Uma lição de rua

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Jornal A Guarda

Foi há tempos, bem no coração da cidade da Guarda.

Encontrava-me junto ao meu carro a aguardar pela chegada de um familiar. Esperava e aproveitava o tempo na leitura do jornal. Num repente surge-me por cima do ombro esquerdo um braço a apontar na direcção do diário. Julguei que seria algum amigo ou conhecido que assim me vinha saudar. Virei naturalmente a cabeça para a esquerda e deparei com dois desconhecidos no momento em que um deles me dirigia a seguinte mensagem:
– Não leia, que os jornais só dizem mentiras. Além de gastar dinheiro, perde o seu tempo!
Assim, de forma radical: «os jornais só dizem mentiras». Não são inverdades que dizem; são mentiras. Não dizem simplesmente mentiras, dizem «só» mentiras. Não só o jornal que tinha em mãos, mas «os jornais», quer dizer, «todos» os jornais. E vinha o conselho: não leia para não perder dinheiro nem tempo.
Sem mais palavras, continuaram a andar, agora olhando furtivamente para trás, presumivelmente a observarem a minha reacção, que, aliás, foi bem simples. Disse qualquer coisa sem sentido óbvio, levantei os olhos do jornal e fixei atentamente os dois cavalheiros, na tentativa de os poder identificar. Mas nada. Os inesperados passantes eram-me rigorosamente desconhecidos, e fiquei sem saber se a minha pessoa lhe diria alguma coisa, para assim se me dirigirem de forma tão estranha.
Que teriam contra os jornais aqueles senhores para se dirigirem a um desconhecido (seria?) que se encontrava sossegado na rua a ler um jornal? Embora reconheça muitas fraquezas, pobreza mesmo, dos jornais actuais, há que reconhecer que estamos perante um erro de raciocínio lógico muito comum, cometido frequentemente por qualquer um de nós: uma generalização, acompanhada no caso presente com a exclusividade daquele «só», que bem expressa outro erro em que vamos todos caindo.
É sabido que mesmo as generalizações terão sempre algum fundamento, objectivo ou subjectivo. Haverá sempre razões várias nas entrelinhas noticiosas. Razões de quem escreve e de quem lê. No caso vertente, para além da hipótese de uma simples brincadeira, poderá haver razões ideológicas, mas poderá haver profundas razões pessoais, desde o desencanto factual com os jornalistas ou outros agentes sociais, até a uma frustração existencial a exigir comportamentos compensatórios. Um desabafo sobre um leitor de jornais também poderia servir para tal.
Ou então poderiam aqueles passantes estar a ser bem mais subtis. Filosoficamente estar-me-iam a dizer que é impossível a objectividade e a neutralidade de quem escreve, sendo que a imparcialidade se manifesta desde logo na agenda noticiosa de cada redacção e no realce dado aos factos que facilmente se pode constituir numa manipulação subtil da realidade.
Além da complexidade da essência da verdade e da mentira, que nunca será de desprezar, mesmo a mais simples verdade seria acompanhada de alguma mentira e a mais simples das mentiras seria sempre envolvida num manto de alguma verdade. Ficaria à consideração de cada um escolher um dos lados da balança. E que factores para a escolha? Bem, estou a caminhar por caminhos envoltos em pouca luminosidade. Mudarei de agulha, mas não sem primeiro lembrar o poeta António Aleixo: «Para mentira ser segura / E atingir profundidade, / Tem de trazer à mistura / Qualquer coisa de verdade.»
Também não seria de descartar a questão da distinção entre jornalistas e suas fontes. Poderiam eles estar a distinguir interiormente entre as «mentiras» dos jornalistas e as «mentiras» das suas fontes. De qualquer modo, os jornais trariam «mentiras», assim me disseram na rua e ficaria para o leitor, quer dizer, para mim, saber fazer a destrinça entre a verdade e a mentira, possibilidade tanto mais complexa quando um jornal concorre com outros jornais, os jornais com rádio e televisão, e todos com os novos recursos de difusão, normalmente designados de redes sociais onde todos têm voz, onde tantos se passam por «jornalistas» e todos são potenciais «leitores» num mundo de dimensão viral.
A verdade da mentira ou a mentira da verdade? Dizer a verdade mentindo, ou mentir dizendo a verdade? Dizer verdades que escondem a verdade e mentiras que escondem a mentira? Dizer verdades que escondem a mentira e mentiras que escondem a verdade?
Estranhas perguntas, certamente. Mas não serão perguntas inúteis, não! À muita falta de rigor com que são dadas as notícias, juntam-se notícias incompletas e parcelares e muita desinformação forjada, quantas vezes, por opiniões facciosas, um terreno onde vão disseminando boatos, juízos simplistas e apressados, ataques pessoais, deformações e manipulação daquilo que o outro diz, descontextualizações dos factos e dos dizeres. Tudo se pode constituir como uma rede comunicacional de intrincadas consequências, particularmente em tempo de campanhas eleitorais onde o debate livre vai ficando contaminado e a democracia mais vulnerável aos seus inimigos. Não estará tal a acontecer aos olhos de quem ainda vê?
Não é mentira e creio que todos o vamos experimentando: vivemos numa era comunicacional de tal ordem, que é cada vez mais difícil fazer a destrinça entre “fake news” e as verdadeiras notícias. Seria essa a mensagem daqueles dois transeuntes?
Tradicionalmente os filósofos perguntavam: o que é a verdade? Eles procuravam a sabedoria nos fundamentos radicais do ser, do conhecer e do agir, da beleza e da bondade da vida e das coisas. A filosofia era, então, a procura do saber acerca dos primeiros princípios e primeiras causas, essas que iluminam a via da verdade. Hoje quem ainda se mantém desperto para a vida bem pode perguntar: onde está a verdade? É que ela parece esfumar-se num relativismo absoluto que bem precisa da reencarnação de Sócrates, o filósofo da antiga Atenas.
Talvez aqueles dois passantes desconhecidos tenham razão: os jornais serão um espelho da civilização pós-moderna, e reflectem uma sociedade desenraizada da terra que a poderia sustentar! É isso: talvez sejamos uma humanidade que perdeu as raízes e que abana, sem norte, ao sabor do vento! Tal como abanava o jornal que então segurava entre os dedos das minhas mãos!
Guarda, 16 de Maio de 2019

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