Ontem celebrámos o Dia Mundial da Criança e hoje celebramos o Dia Mundial das Comunicações Sociais.

Há sete dias foram os eleitores europeus desafiados a elegerem os seus representantes no Parlamento Europeu e hoje, como tem sido ao longo da passada semana, andam os líderes partidários, como têm andado analistas políticos e outros fazedores de opinião, a braços com a leitura de quadros, tabelas, gráficos com números, na tentativa de se verem ao espelho e olharem para o espelho dos outros. Há quem festeje e há quem chore, mas outros fazem como o P. António Vieira num dos seus célebres sermões: «não louvo nem condeno, mas admiro-me com as turbas.» Algumas poderão ser turbas sem voz ou de voz enfraquecida.
Foi assim que ontem, recolhido num banco de autocarro, vinha atando, em viajem, os nós da vida que passa no quadro daqueles três eventos. As crianças de hoje e de amanhã abanaram a árvore das minhas responsabilidades, como ser humano, como português, como europeu e como cidadão do mundo, na semente que havia depositado numa urna entregando o cuidado da rega a quem deleguei algum poder.
Cheguei a casa já noite e um tanto cansado da viagem. Acossado, embora, pelo compromisso com o jornal, fui descansar. Amanhã, ia pensando, Dia das Comunicações Sociais, talvez seja um bom dia para escrever para o jornal um texto sobre as últimas eleições e pensar nas crianças de hoje e de amanhã, mesmo que para tal tenha de me socorrer da matemática que continua a ser o papão das nossas escolas.
Marcelo Rebelo de Sousa havia deixado aos portugueses dois pedidos: o pedido desse «pequeno sacrifício de não deixar nas mãos de 20% ou de 25% a decisão que é de todos» e o pedido de se esquecer o que «desgostou na campanha eleitoral, ou a tentação de pensar que é um voto incómodo, um voto desinteressante, um voto desnecessário, ou o comodismo de achar que votar é para os outros, para os núcleos duros dos partidos, para os entendidos, para os mesmos de sempre.» Os pedidos que contrastavam com o avivar das memórias distraídas: «Assim começou, em tantos casos, a fraqueza das democracias. Assim começou, vezes demais, o caminho para a sedução dos poderes absolutos.»
Habituados, como andamos, nós portugueses, com as palavras de um Presidente da República que todos os dias, a propósito e a despropósito, nos aparece a opinar por tudo e por nada, até parece que os portugueses o deixaram ao vento. Já em 1999 a abstenção era um pouco superior a 60%. De então para cá tem vindo sistematicamente a subir a uma média de 2% em cada acto eleitoral. No corrente ano, como é sabido, a abstenção chegou aos 68,60%. Quer dizer, em cada 100 eleitores, votaram somente 31,40%. Isto é, se dividirmos os 3.314.423 de votantes pelos 21 deputados a eleger, coube a cada um a módica quantia de 157.821 de votos. A matemática assusta, mas não sei se assusta os candidatos eleitos. Assustará a situação da democracia e da Europa?
Quer dizer, confirmou-se o receio de Marcelo Rebelo de Sousa.
Mas, se ao número dos abstencionistas juntarmos o número dos eleitores que votaram em branco ou que inutilizaram os seus votos, a matemática assustará ainda mais. Vale a pena dar esse passo, porque me parece que tem vindo a ficar bastante esquecido pelos partidos, pelos blocos noticiosos dos média clássicos e no mundo da opinião publicada.
Lembro os números. Votaram em branco 140.954, 4,25%, e o número de votos nulos foi de 88.961, 2,68%. Ou seja, 6, 93%, número superior ao da CDU, 6,88%, que meteu 2 deputados, e do CDS, 6,19%, que meteu 1. Repitamos de outra maneira: a percentagem de votos brancos e nulos somados equivale a 2 deputados. Quer dizer a matemática assusta, mas não sei se assustará os deputados eleitos.
Correndo embora o risco de ser acusado de demagogia, atrevo-me a dar mais um passo.
Se ao número da abstenção, juntarmos não só os votos nulos e brancos mas também os votos de todas as outras forças políticas que não meteram deputados mas se apresentaram a eleições, 14,84%, obtemos o lindo número de 85,31%. Quer dizer, os 21 deputados eleitos correspondem a 14,69% dos eleitores portugueses inscritos. Pobre número, direi. Triste número, acrescentarei. Será bom que os eleitos se lembrem deste número quando se sentarem na cadeira dos centros do poder europeu.
Como português sento-me envergonhado com estes números. Os resultados são uma vergonha para Portugal, para os partidos e seus líderes, para a democracia portuguesa, para a Europa e para os candidatos, mesmo que eleitos.
Quando, ao longo da semana, fui acompanhando as reacções dos vários partidos, particularmente dos que se dizem vencedores e dos que se dizem vencidos, tristemente fui encontrando sempre análises feitas a partir da lógica da conquista do poder e não a partir da lógica da saúde da política e da democracia portuguesas. E os artigos de opinião que fui encontrando vão, em geral, nessa linha. A lógica da conquista do poder dirá, como ouvi, que venceu a democracia. Formalmente, sim; materialmente, importará proceder a muitas distinções.
Essa lógica da conquista do poder é a lógica que tem vindo a descredibilizar a política, o sistema político e a tirar-lhe a dignidade. A lógica da saúde da política e da democracia dirá que se impõe a reinvenção da política portuguesa para mobilizar a voz do povo. A voz dos que ficaram sem ter representantes ressoa bem alto no silêncio. Haja quem a possa ouvir e proceda em conformidade.
Há pouco mais de um mês celebrámos o 25 de Abril. Na Assembleia da República Portuguesa ouviram-se os velhos discursos costumeiros que já pouco ou nada significam à generalidade dos portugueses, cansados de ouvir loas à democracia e à liberdade. Sim, importa sempre falar de democracia e liberdade, mas tal discurso tem de ser completado com a responsabilidade do exercício cívico da política a exigir sempre um exame dos comportamentos havidos. Foi isso que não se ouviu naquela sessão solene do Palácio de S. Bento. A excepção, que confirmou a regra, foi a voz de Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia. Mas não sei se os deputados o souberam ouvir.
Os partidos vão discutindo vitórias e derrotas, mas com esta paupérrima campanha, foi a Europa a sair derrotada e a democracia fragilizada. Os partidos clássicos, presos a velhos critérios ideológicos, mesmo vencendo, não se credibilizaram e os novos e pequenos não puderam fazer ouvir a sua voz.
Aproximam-se eleições legislativas. Veremos quem vai saber ouvir a voz de quem ficou sem poder. São quase 75% do universo dos eleitores ou 85% se lembrarmos também os que, tendo ido às urnas, não ficaram representados na assembleia dos eleitos. A voz destes números é também a voz silente do futuro das nossas crianças.
Guarda, 2 de Junho de 2019.