Entrevista: Carlos Brito - Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda
Carlos Brito, presidente da Direcção do Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda, é natural da Guarda – São Vicente. Fez a 4ª classe e, mais tarde, o 9º ano (Novas Oportunidades). Começou a trabalhar com 10 anos.
Nos tempos livres gosta de ver televisão e de conviver com as pessoas.
A GUARDA: Quem é Carlos Brito?
Carlos Brito: Carlos Brito é um indivíduo natural da cidade da Guarda. Só abandonei a minha terra na altura do 25 de Abril de 1974 que fui para Lisboa e depois mobilizado para Angola. Esta ausência foi devido à transição, pois era obrigado a ir para Angola. Nessa altura eu já tinha dois filhos. Ainda se me meteu na cabeça a ideia de desertar mas, depois, achei que seria preso. Se isso acontecesse, quem governava os meus filhos? Eu tinha um filho com quatro anos e uma filha com dois. Ainda meti o processo de amparo, mas não mo deram.
Fiquei traumatizado. O Capitão Cabral publicou um livro sobre a guerra e dedicou-me quatro páginas. E porquê? Porque eu era o bêbado, eu era o destemido. Eu tinha coragem para enterrar os mortos na vala comum.
Aquilo que costumamos ver na guerra, em que os mortos são metidos nos sacos, lá não acontecia isso, era tudo ao molho e fé em Deus.
Isto foi traumatizante para mim. Foi muito difícil. Eu tenho o stress de guerra e, de vez em quando, vou à guerra. Acordo durante a noite! Marcou-me para toda a vida.
Aquilo que se está a ver agora na Ucrânia era aquilo que eu fazia, só que nós não tínhamos sacos para enterrar os mortos, iam para a vala tal como estavam.
Eu era o único que fazia esse trabalho e a única exigência que fiz foi que me dessem uma garrafa de whiski todos os dias de manhã. No espaço de meia hora eu dava conta da garrafa. O Capitão Cabral diz isso no livro.
A GUARDA: O que guarda de bom da sua juventude?
Carlos Brito: Na minha juventude sempre fui participativo. Comecei como menino do coro. O senhor padre Eugénio ensinou-me a ajudar à Missa em latim aos senhores cónegos, na Sé. Havia missa diária às 7.00 horas. Eu vivia na zona do Colégio de São José e, com oito aninhos, ia à Cozinha Económica tomar o pequeno-almoço, que era a Cantina dos Pobres.
Depois ia para a Sé, vestia-me e ajudava à Missa.
Naquela altura, como Salazar dizia que o vinho matava a fome a um milhão de portugueses e por isso todas as pessoas deviam consumir as sopas de vinho. O vinho era um remédio. Dava força, facilitava a digestão, tinha todas as qualidades possíveis e imaginárias.
Eu e o Nuno, que já morreu, todas as manhãs tínhamos um despique quando ajudávamos à Missa. O senhor padre Isidro teve de marcar uma norma em que alternávamos no serviço de apagar as velas e levar as galhetas para a sacristia. Tínhamos esse acordo. O facto de nós levarmos as galhetas para a sacristia, era para escorrer o resto do vinho que sobrava da Missa.
Marcou-me bastante o facto de ser menino do coro. O senhor Padre Isidro dava-nos 50 escudos por mês com os quais ajudava a minha mãe.
Ajudava a minha mãe porque o meu pai era alcoólico e estava despedido e não lhe davam emprego.
A minha mãe trabalhava na máquina de costura, desde as seis da manhã à meia-noite. A minha mãe para mim foi uma santa. Trabalhou muito para cuidar de nós.
A GUARDA: E menos bom?
Carlos Brito: O menos bom foi o facto de não poder estudar. A situação também não era muito propícia para isso. Estávamos à espera de fazer os dez anos para ir logo a trabalhar e começar a ganhar dinheiro.
Quando ajudávamos nos casamentos ou íamos tirar o folar, as pessoas davam-nos gorjetas. Posso dizer que nunca tive falta de dinheiro. Nunca roubei nada. As gorjetas davam para comprar um tabaquito na Americana, andar de bicicleta na senhora Prazeres.
Foi uma mocidade vivida à maneira daquele tempo.
A minha mãe tinha umas mãos de ouro como costureira e eu era o menino que lançavas as modas na Guarda. Andava sempre bem vestido.
Era muito fã do Roberto Carlos. Eu disse, que quando fosse pai - fui pai aos dezoito anos, casei com dezassete anos – o meu filho se iria chamar Roberto Carlos.
Há toda uma passagem vivida de toda esta envolvência de menino do coro, de lobito, do orfeão do Centro Cultural, do teatro do Centro Cultural. Fui dos pares fundadores do Rancho da Guarda. Quem nos fez o traje foi o senhor Jaime, o sacristão da Igreja da Misericórdia.
A GUARDA: Mas o que é que o levou a enveredar pelo alcoolismo?
Carlos Brito: Era um conceito que estava instalado. Já referi que o Salazar dizia que o vinho matava a fome a um milhão de portugueses. Ele dizia à boca cheia que da guerra nos livrava mas da fome não.
As sopas de vinho intoxicavam, logo de pequenino, as crianças e eu habituei-me a beber.
Eu sofri muito com o alcoolismo do meu pai.
A GUARDA: Tem medo do passado?
Carlos Brito: Não tenho medo do passado. E ter medo de voltar a beber também não tenho. Sou um homem abstinente já a caminhar para 43 anos, não são 43 dias. E foi através do meu exemplo que me empenhei a sério na criação do Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda.
A Guarda: Como surgiu a ideia de criar o Centro de Alcoólicos Recuperados?
Carlos Brito: Eu vivi o alcoolismo do meu pai e isso marcou-me muito.
Falei com a Doutora Maria Lucília, do Centro de Recuperação de Alcoólicos de Coimbra a dizer-lhe que se me arranjasse essa possibilidade um punha lá dois doentes semanalmente, todas as segundas-feiras.
No Centro de Alcoólicos de Coimbra entravam oito doentes por semana e a Doutora Maria Lucília deu-me prioridade para dois doentes. Ela pensava que eu não era capaz de encaminhar dois doentes por semana, mas fui capaz.
Eu trabalhava no António Saraiva, um empreiteiro, que foi um dos meus grandes motivadores. Ele dizia-me: Ó Brito tu não sabes o que vales! Tu a beber vales muito dinheiro, tu sem beberes vales o dobro.
Foi um dos homens que, efectivamente, me motivou a deixar de beber.
No meio disto tudo eu tenho um mau currículo. Toda a gente me via como um farrapo humano. Quando entrava num café começava a partir tudo, andava à porrada. Eu respondi 14 vezes em Tribunal por andar à porrada com os polícias. Eu cheguei a vender o próprio sangue nos hospitais - antigamente o sangue era vendido – para ter dinheiro para beber.
Eu não tinha nenhuma porta aberta. Só tinha Esquadra da Polícia, Hospital e Tribunal, de resto estava tudo fechado para mim.
A GUARDA: É esta situação que o motiva a avançar com o Centro de Alcoólicos Recuperados?
Carlos Brito: Sim, parte daí. Eu não era nenhum alcoólico anónimo. Os alcoólicos anónimos, pelo respeito que eles nos merecem não podem assumir em plena via pública, ou num convívio. Tem de ser numa assembleia deles. E eu não quis isso.
Em 1983 fiz cair o muro da vergonha. Fui à televisão ao Porto e queriam-me por uma máscara na cara e distorcer a voz. Eu quis dar a cara e assumir que sou um alcoólico tratado que efectivamente bebia muito e agora quero deixar de beber.
O alcoólico anónimo não assume pessoalmente e não dá a cara a ninguém.
Uma coisa inédita que eu fiz, foi dar a cara logo desde o princípio.
Não foi fácil o ter deixado de beber, mesmo junto dos amigos. Tive de explicar: “Eu continuo a ser o mesmo Carlos Brito, não sou é bêbado nem o desordeiro que conheceste”.
Provocaram-me muitas vezes e até me passaram o copo muitas vezes pelo nariz. Mas eu assumi, dei a cara.
De 1980 a 1983, as pessoas esperavam à porta de minha casa – eu trabalhava em Vilar Formoso – a pedir-me ajuda para o pai, para o marido, para o filho. Muitas vezes às seis horas da manhã já estavam à porta da minha casa a pedir-me ajuda.
A GUARDA: Quem é que procura ajuda do Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda?
Carlos Brito: No Distrito da Guarda, quase todas as pessoas que têm problemas de álcool vêm ter connosco. As pessoas são encaminhadas e aconselhadas como devem actuar. Os nossos doentes são sensibilizados por mim. Vou ao encontro do que se passa com eles todos e não é fácil. Eu que vivi, eu que sofri, sei as manhas do doente alcoólico.
Sei que o doente alcoólico, de manhã quando acorda, acorda com tremuras e bebe o primeiro, e bebe o segundo e bebe o terceiro e então a partir daí é que deixa de tremer… Outros quando acordam começam a tossir…
A GUARDA: Fala deste assunto com muita naturalidade?
Carlos Brito: Sim, com muita naturalidade. Costumamos fazer sessões de esclarecimento nas escolas e dá-me um prazer enorme. Quando falo com eles, vou ao encontro daquilo que efectivamente não imaginavam que o álcool faz. Falo das causas e das consequências e os miúdos estão atentos a uma pessoa que viveu a experiência.
A GUARDA: Que outras actividades é que costumam fazer para ajudar as pessoas?
Carlos Brito: A nossa tarefa passa muito por sensibilizar as pessoas. Por exemplo, um doente pede-me ajuda, eu marco em termos de agenda e peço que venha um familiar com o doente alcoólico, para que seja feita a intervenção directa. O familiar tem de saber o que é a doença do alcoolismo.
Uma das grandes facetas que está relacionada com o alcoolismo é a violência doméstica.
A GUARDA: O álcool continua a ser um problema?
Carlos Brito: Um problema e grave e, agora, associado a bebidas diferentes. Antigamente dizia-se que só quem bebia vinho é que era borracho. Mas imaginemos, eu tenho aqui quatro garrafas de vinho a 12 graus, vai fazer 48 gruas. Para quem me vê sou um bêbedo. Mas ao meu lado há alguém a beber uma garrafa de whisky, a 48%, ninguém repara nele. Eu é que sou o bêbedo porque já bebi quatro garrafas de vinho. Só que em termos de organismo, se tivermos o mesmo peso e a mesma altura, quem bebe whisky bebe tanto mais que aquele que está a beber vinho.
Hoje fala-se muito nos jovens e nos shots. Os shots batem mesmo a sério. E este tipo de bebidas tomou conta das gerações mais novas.
A GUARDA: Quem bebe mais, os homens ou as mulheres?
Carlos Brito: Neste momento não se sabe quem é que bebe mais, se é o homem se é a mulher. Uma rapariga com 1,70 de altura e um rapaz com a mesma altura, a beberem as mesmas bebidas, a rapariga embriaga muito mais depressa que o rapaz. Isto acontece devido a dois factores: as raparigas têm menos água no corpo que os rapazes; e não tem uma enzima no corpo que o homem tem. A intoxicação de um homem vai de 5 a 10 anos e a mulher é capaz de fazer de 3 a 5 anos.
Há muitas mulheres a procurar ajuda no Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda.
A GUARDA: Faz ideia de quantas pessoas é que já foram ajudadas através do Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda?
Carlos Brito: Já ajudámos milhares de pessoas, com uma taxa de sucesso de 80%. Muitos deles agradecem a ajuda que lhes prestamos.
É gratificante receber mensagens de tantos indivíduos que mostram o seu reconhecimento. Fico satisfeito, fico radiante.
A GUARDA: Quais os projectos que gostaria de desenvolver no futuro?
Carlos Brito: O Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda, para mim, é o meu quinto filho. Recebemos um subsídio da Segurança Social mas houve uma grande parte, durante quinze anos, que fui eu que governei o Centro. Nós não tínhamos um protocolo atípico. Foi feito um protocolo atípico quando o Doutor Carlos Andrade nos deu 50 contos por mês, mas 25 eram para a assistente social, doze eram para os descontos da segurança social, e a instituição ficava com 13 contos.
Quando não tinha dinheiro para pagar a renda no dia 8 de cada mês, o senhorio já queria mais 50%.
Chorei muita lágrima de sangue. Pagávamos muito de renda e não levávamos dinheiro a ninguém.
A sensibilização continua a ser muito importante. Tenho doentes que demoraram quinze a vinte anos a começar o tratamento.
Nós fazemos a sensibilização, acompanhamos o doente à consulta, quando é proposto o internamento fazemos o acompanhamos e quando tem alta também é connosco.
Fazemos acções de sensibilização na comunidade, nas escolas e no Estabelecimento Prisional. Há muitas pessoas que estão detidas por causa do álcool.
A GUARDA: Com todo este trabalho, o Carlos Brito é uma pessoa bem vista por toda a gente?
Carlos Brito: Sim, sou acarinhado por toda a gente. A Câmara da Guarda já reconheceu a instituição, mas nunca reconheceu o Carlos Brito.
Vou agora ser homenageado pelo Rotary Club da Guarda. Uma homenagem, um reconhecimento por alguém, eu não posso dizer que não gosto. É o reconhecimento de que eu fiz alguma coisa.
A homenagem do Rotary Club da Guarda está marcada para o dia 14 de Janeiro e é aberta a todas as pessoas que se queiram inscrever.
Mas posso dizer que para mim a melhor homenagem é o doente alcoólico recuperado.
A GUARDA: Sente-se realizado?
Carlos Brito: Sim, sinto-me realizado mas gostava de andar cá mais uns anitos. Para mim recuperar um alcoólico, ver a família dele, ver os filhos a crescer é a melhor coisa que eles me dão. Fico muito satisfeito quando vejo que algum dos doentes está bem. É a maior gratificação que me podem dar.
Gostava de ver os filhos dos meus filhos mais novos. Já sou bisavô. Os meus filhos e os meus netos têm orgulho em mim.