Entrevista: José Luís Monteiro, Director da Biblioteca do Saulchoir – Biblioteca Provincial e Patrimonial da Província Dominicana em França

José Luís Monteiro, actual Director da Biblioteca do Saulchoir – Biblioteca Provincial e Patrimonial da Província Dominicana em França, é natural de Gouveia e tem ligações familiares a Parada do Côa, concelho de Almeida. Nos tempos livres gosta de ler. Essa é uma das principais paixões. Também é amante de pintura. Aprecia muito a música clássica e o contacto com a natureza. Por exemplo fotografar elementos da natureza, como a oliveira centenária….da capa do último livro de poesia.
A GUARDA: Quem é José Luís Monteiro?
José Luís Monteiro: Nascido em Gouveia em 1960, vivi nesta vila e depois cidade, onde fiz uma boa parte dos meus estudos, passando a partir de 1978, pelos Missionários Combonianos. Nesta Congregação passei quatro anos de formação, que também foram anos ricos de experiência humana e religiosa. Mas essa caminhada levou-me a procurar melhor o meu lugar de compromisso e de vida apostólica. Mas antes disso, em Gouveia e na aldeia de São Paio, onde nasceu minha mãe, nessas duas localizações bebi as minhas origens, complementadas com a Parada do Côa, terra natal do meu pai, onde também recebi muito. Curiosamente é na Parada que é festejado São Domingos, o fundador da Ordem dos Pregadores ou Dominicanos, à qual pertenço desde 1983. Tudo isso para dizer que me considero com muito orgulho beirão. Sinto-o ainda mais ao residir fora de Portugal desde 1981, ou seja há quase 40 anos. A experiência do estrangeirado em que me tornei, fez-me compreender a riqueza das minhas origens, nesta belíssima região à qual gosto sempre de voltar. 
A GUARDA: O que é que o levou a entrar na ordem Dominicana? José Luís Monteiro: Não tendo conhecido os dominicanos em Portugal, talvez por nunca me ter cruzado com nenhuma das suas comunidades, acabei por ir até Paris, após ter feito uma breve estadia estival em França em 1980, no espírito de uma busca interior. No ano seguinte, aos 21 anos, fui sozinho, um pouco à aventura, para confirmar algumas intuições sobre a vida da Igreja naquele país. Algumas foram confirmadas. Outras, quais miragens, abandonei-as definitivamente. Compreendi nessa ocasião a força da decisão pessoal, livre, que levei pela frente. Foi uma vitória, embora em termos de relações pessoais, nem sempre tenha sido entendido por algumas pessoas no nosso país. Mas isso é outra história. Foi nessas circunstâncias que encontrei um lugar de acolhimento num dos conventos dominicanos de Paris. Temos dois conventos na capital francesa. Aí fui porteiro do convento durante dois anos, o que me permitiu financiar os meus estudos teológicos, já em parte iniciados em Coimbra, onde estudei durante dois anos. No convento de Paris, que é aquele onde resido na actualidade, descobri São Domingos, que me fascinou, até pela sua discrição, porque ele, literalmente se esconde atrás da sua Ordem. A pregação dos frades, bem enraizada biblicamente e doutrinalmente e também muito aberta ao mundo contemporâneo acabaram por me convencer que deveria ser aí o meu lugar de vida. Em 1983 entrei no noviciado dos Dominicanos em Estrasburgo.
A GUARDA: Grande parte da sua vida foi passada em França onde tem desempenhado inúmeras missões, nomeadamente o acompanhamento de comunidades portuguesas e de Bibliotecário conventual. Como convive com estas realidades tão distintas?José Luís Monteiro: De facto, o meu itinerário lembra um pouco Abraão…Sai da tua terra, eu que gosto tanto da nossa região. Mas a outra vertente é a vivência muito concreta da obediência. Não que eu me apresente como um modelo, longe de mim. Mas lembro que o meu primeiro convento de ministério foi Dijon, cidade para a qual não estava especialmente virado e é verdade que muitos anos mais tarde foi fechado e vendido. Mas sempre abracei mesmo quando me doía interiormente as cidades para onde fui. E confesso que sempre recebi muito, ao descobrir novos mundos e novas pessoas. Mas por vezes e quando a idade avança, torna-se mais desconfortável. Mas esse despojamento é um  caminho salutar. As missões que tenho desempenhado não têm sido principalmente o acompanhamento das comunidades portuguesas, mas como elas têm sido muito abandonadas tanto pela Igreja de Portugal, que também vive com poucos recursos humanos e eclesiais, como também têm sido obrigadas em muitos casos, a integrarem-se um pouco à força, tento dar uma ajuda onde posso e consoante a minha disponibilidade e a anuência dos meus superiores.  A comunidade portuguesa em França vive uma situação singularíssima que nem sempre tem sido analisada. Ela é a maior comunidade católica estrangeira em França. Mas não dispõe desde as origens de acompanhamento pastoral suficiente. Então o que acontece? A Igreja francesa faz o que pode e sacerdotes, religiosos e leigos franceses em muitas dioceses têm sido exemplares no acolhimento dos portugueses. Mas alguns bispos e sacerdotes têm sido mais realistas que o rei e têm obrigado muitas comunidades portuguesas a integrarem-se à força. Isso deve-se a uma compreensão excessiva da laicidade, temendo a criação de guetos e é verdade que alguns possam existir. Mas também houve decisões brutais em relação às comunidades portuguesas, por exemplo na diocese de Saint Denis, na periferia de Paris, onde por decreto episcopal se varreram as estruturas próprias das comunidades portu guesas. Isso foi chocante. E porque razão isso foi feito? Porque sendo os portugueses muito numerosos nessa e nalgumas dioceses, estas não puderam ou quiseram dar-se ao luxo de criar estruturas próprias para as comunidades portuguesas. O volume de estrangeiros é de tal forma elevado nalgumas cidades francesas que sem a contribuição dos portugueses a vida religiosa em grande parte se extinguiria. Ali como algures, também fui testemunha como em Paris de situações de integração à força em relação aos portugueses. Isso apesar da coragem apostólica do Cardeal Lustiger que por vezes rumou sozinho contra a corrente de alguns dos seus sacerdotes, compreendendo de forma inteligente e lúcida as necessidades específicas das comunidades portuguesas. As comunidades polacas nunca eram vistas como guetos. No entanto, em grande parte funcionavam num meio compartimentado. Porquê essa diferença? Porque dispunham e dispõem dum clero polaco numeroso que responde a todas as necessidades desta comunidade em França. Agora posso fazer uma leitura positiva porque isso obrigou muitos portugueses a descobrirem as realidades eclesiais francesas e isso foi enriquecedor para ambos os lados. Mas é necessário escrever a história com lucidez e compreender estes meandros eclesiais e sociológicos.  Também tenho observadosituações de rigidez da parte de alguns leigos portugueses que por vezes se tornam proprietários das comunidades tornando difícil a sua evolução. Por outro lado, tenho contemplado com admiração evangélica a persistência de muitos leigos desconhecidos da maior parte que são verdadeiras testemunhas e pedras vivas, verdadeiros buscadores de Deus, de alma limpa. Por exemplo, quanto bem feito junto das pessoas da parte de muitas porteiras portuguesas nos prédios parisienses e algures, humanizando as relações, tecendo laços onde eles não existiriam e velando pelos mais idosos abandonados.
A GUARDA: Que experiências guarda da sua passagem por São Paulo e Rio de Janeiro?
José Luís Monteiro: Residi no Brasil de 1995 a 1999. Assumi poucas semanas após a minha chegada, a responsabilidade de pároco da Igreja de São Domingos, no bairro das Perdizes, em São Paulo, cerca de quatro anos. E quatro meses no Rio de Janeiro, para pelo menos contemplar a beleza sedutora daquela cidade. Foram anos mais do que cheios. Tudo foi intenso e uma compreensão da teologia da libertação fechada e dogmática na comunidade onde vivi, acabou por me decidir a regressar à Europa para não viver uma situação kafkiana. Mas tudo valeu a pena e os amigos, em particular poetas da minha geração e familiares que tenho naquela cidade de São Paulo, foram um bálsamo fabuloso e ali regressei ainda no ano passado para uma breve visita. Acresce o facto que ali publiquei num breve espaço de tempo, 4 títulos de poesia, 3 traduções de espiritualidade e por fim…encomendei 3 sinos para a igreja de que era pároco. E foi  Dom Cláudio Hummes, arcebispo de São Paulo na altura, que os veio benzer. Foi este arcebispo que inspirou ao actual papa Francisco o seu nome como papa. Foi um milagre do ponto de vista financeiro, a colocação desses sinos, porque me diziam que não havia dinheiro quando cheguei e ali ficaram para gáudio dos paroquianos e vizinhos judeus que telefonaram à paróquia celebrando o acontecimento!A GUARDA: Apesar de residir em França nunca esqueceu as origens e tem pensado, para Gouveia, o Museu Internacional do Livro Sagrado. Qual a finalidade do projecto e como é que vai ser concretizado?
José Luís Monteiro: Na sequência duma conversa com um amigo, o professor José Eduardo Franco, foi lançada a ideia de criar um local relacionado com o Livro Sagrado, aberto a diversas crenças, não só a católica. Esse projecto suscitou diversos apoios e a promessa de espólios de livros, para além do espólio que já coloquei à disposição de Gouveia com esta finalidade, inclusivamente um fundo hebraico significativo. Entretanto foi feito o pré-projecto do futuro Museu, pelo arquitecto João Fávila e seu gabinete em Lisboa. O plano mais pormenorizado do seu interior (ou master plan) também foi efectuado, assim como a realização duma visão em 3D. Esse pré-projecto foi apresentado ao público em Fevereiro passado, encontro para o qual me desloquei propositadamente para ali dar a minha contribuição. Um pequeno volume em português e em inglês, apresentando o espírito do projecto e do lugar foi também preparado, estando para ser em breve editado. Todavia estamos à espera, a Câmara Municipal de Gouveia, em particular, que a pandemia acalme, para serem retomados os contactos com os mecenas, que já foram identificados para colaborarem neste projecto, que sem dúvida pode parecer ainda mais utópico que os sinos de São Paulo! É um projecto ousado, custoso sem dúvida, mas que pode ser uma alavanca para a cidade de Gouveia, que precisa com urgência de sair da sua letargia. Haja agora vontade política e apoios e a nossa região e o país só sairão beneficiados. Mas é necessário sobretudo não só procurar apoios financeiros, porque esses se encontrarão. É preciso que as pessoas acreditem nas potencialidades e na criatividade da nossa região. Velhos do Restelo já temos de sobra para anular projectos e sonhos!
A GUARDA: Também estão programados dois Congressos Internacionais, um sobre a Bíblia Sagrada, e outro sobre “Comer religiosamente, gastronomia e religiões do mundo”?
José Luís Monteiro: O Congresso Internacional ‘A Bíblia na cultura ocidental’ por força das circunstâncias foi adiado e está agora previsto para os dias 1, 2 e 3 de Julho de 2021. O segundo Congresso centrado sobre a temática da gastronomia e as religiões do mundo está previsto para 2023. 
A GUARDA: “Que nada se sabe” é o título do seu último livro que também vai ser apresentado em Gouveia. Quando e onde vai decorrer a apresentação?
José Luís Monteiro: A apresentação vai ser feita nos jardins da Câmara Municipal de Gouveia no domingo 9 de Agosto pelas 16.00 horas, mas com um grupo restrito devido à situação sanitária actual, no preciso dia em que decorreriam as festas em honra do Senhor do Calvário. Uma transmissão online será feita naqueles dias dos vários actos culturais e religiosos.

“A biblioteca do Saulchoir, sendo privada, está aberta ao público todos os dias da semana”A GUARDA: Como Director da Biblioteca do Saulchoir – Biblioteca Provincial e Patrimonial da Província Dominicana em França – quais são as suas principais funções?José Luís Monteiro: Voltei para Paris em 2016, onde resido pela terceira vez. Como director da biblioteca tenho ao meu cargo quatro empregados e uns 5 voluntários. A biblioteca do Saulchoir, sendo privada, está aberta ao público todos os dias da semana. Recebemos todos os dias uns 15 a 30 pesquisadores exteriores. Devo velar pelo bom funcionamento da equipe, pela gestão financeira do conjunto: aquisição de livros, periódicos, encargos sociais dos funcionários e outras despesas decorrentes do seu normal funcionamento. Desenvolvo contactos com os visitantes e de facto sou no quotidiano o único rosto religioso dominicano. Outros frades a consultam sem dúvida. Acontece que a nossa biblioteca tem um renome internacional que me espanta. De facto, vários pensadores a frequentaram, entre outros Jacques Le Goff, Michel Foucault (quando este pensador faleceu, foi um dos meus predecessores a celebrar uma cerimónia fúnebre, recebendo os agradecimentos da mãe desta figura famosa, que tão afastada parecia da Igreja) e Pierre Vidal-Naquet, este último de origem judaica. A família deste historiador confiou-me a totalidade da sua biblioteca, que sendo numerosa, ainda está sendo integrada. Outros jovens pesquisadores continuam esta tradição correspondendo à abertura da nossa Ordem, ao colocar o nosso acervo privado ao serviço do bem comum. Integramos cerca de 6000 títulos por ano. E temos quase 10 000 títulos de periódicos num universo de cerca de meio milhão de documentos. Um manancial fabuloso e que nos dá uma responsabilidade acrescida. No dia 16 de Março passado, tomei a decisão de fechar a biblioteca devido à pandemia. No dia 26 de Maio abrimos a biblioteca e foi literalmente uma ‘enchente’ apesar de respeitarmos a maioria das normas sanitárias. Recebemos até 37 pessoas por dia, mais do que antes da pandemia. E porquê? Porque a maioria das bibliotecas estavam fechadas. Com razão, a minha Província Dominicana de França considera que este lugar é um lugar apostólico pela abertura que proporciona e pelos mundos tão diversos que se cruzam no seu seio, no grande mundo da cultura, que a Igreja não pode descurar. Naturalmente tendo sido pároco junto duma paróquia francesa exorcista e capelão diocesano dos portugueses em Lyon, de 2012 até 2016, a mudança foi radical, mas como fui bibliotecário conventual em Estrasburgo, Dijon, Tours e Lyon a adaptação foi rápida, apesar de me encontrar numa escala sem comparação com as anteriores bibliotecas.