Entrevista: José Nunes Ferreira (Zé Camilo), pastor


José Nunes Ferreira, conhecido na região como Ti Zé Camilo, é um dos pastores mais antigos da Serra da Estrela. Nasceu em 1931, em Fernão Joanes, concelho da Guarda. Esteve pouco tempo na escola e começou a guardar ovelhas aos sete, oito anos de idade. Foi homenageado, recentemente na Festa da Transumância – Chocalhos, em Alpedrinha (Fundão).
A GUARDA: Quem é o pastor Zé Camilo?

Zé Camilo: O meu nome é José Mendes Ferreira. O meu avô era Camilo e por isso é que me tratam por Zé Camilo. Tenho 91 anos feitos, no dia 2 de Janeiro faço 92. Sou natural de Fernão Joanes. Vivi aqui sempre. Comecei a ser pastor com a idade de 7 ou 8 anos.

A GUARDA: Andou na Escola?

Zé Camilo: Andei na escola, mas a escola não me agradava, só me agradavam as ovelhas. Eu fugia da escola e ia ter com o meu pai onde ele andasse a guardar as ovelhas. O meu pai começou a ir para o campo (Idanha-a-Nova), com a malta de Videmonte. Nessa altura veio cá um homem a vender loiça e perguntou-me se não queria ir ver o meu pai. E eu respondi-lhe: se a minha mãe me deixasse ir, claro que ia. E não é que a minha mãe me deixou ir. Foi a primeira vez que eu fui ter com o meu pai quando ele andava a guarda as ovelhas lá tão longe.
Para cá, para voltar a Fernão Joanes, o meu pai tinha que falar com os pastores de Videmonte para ver se queriam fazer queijo ou se não queriam. Isso é que foi uma caminhada. Saímos de Idanha-a-Nova ao romper da manhã e chegámos à Catraia (alto de Famalicão) ainda com um pedacinho de sol. Meu pai com dez quilos de carne às costas e eu com dois cães presos. Cheguei a casa, tirei as botas e as meias. As unhas ficaram agarradas às meias.
Foi uma caminhada muito grande! Ora, num dia, em Janeiro, da Idanha-a-Nova para aqui veja os quilómetros que são.

A GUARDA: Até quando é que teve ovelhas?

Zé Camilo: Quando morreu a minha mulher, há doze, treze anos, comecei a ter menos ovelhas. Ainda as guardei mais uns anitos e depois acabei com elas (ovelhas).

A GUARDA: Guardou muitas ovelhas?

Zé Camilo: Tinha um rebanho grande. Cheguei a ter cem ovelhas e era tudo chocalhado, todas tinham o seu colar, a sua campainha. Quando acabei com as ovelhas vendi uma saca de campainhas. Mas as melhores guardei-as para mim, essas não as ofereço a ninguém.

A GUARDA: Quantos pastores havia em Fernão Joanes?

Zé Camilo: Havia cá muitos. Quando era ‘novacho’ cheguei cá a contar quarenta. Uns com poucas, outros com mais, havia muitas ovelhas. Quem tinha o maior rebanho era o meu sogro. Tinha um rebanho grande e andava sempre na Serra. O ver dele era a Serra e o meu pai também e eu também.
A GUARDA: Gostava de levar as ovelhas à romagem da Senhora do Soito?
Zé Camilo: Oh, oh, então as nossas ovelhas falhavam lá! Nunca lá falharam. Era um uso antigo fazer a romaria. Vinha muita gente de fora para ver as ovelhas à volta da Capela. Eu avezei-as a ajoelhar. Algumas, algumas! As ovelhas também eram uma atracção da romaria da Senhora do Soito. Agora já não rebanhos, já não há ovelhas.
A GUARDA: Não há ovelhas e a Serra também está muito diferente devido ao incêndio do mês de Agosto?
Zé Camilo: Agora a Serra não vale nada, ardeu toda. Gado não há lá. Anda lá um rebanho de um rapaz de Famalicão que está em Gouveia. Toda gente lhe deu os lameiros para andar com as ovelhas para terem alguma coisa de comer. Eu também lhe dei o meu lameiro. Dei-lho dado. Antes pagavam-me a renda, davam-me um borrego a escolher para comer. Agora ele se me dá alguma coisa dá, aceito. Se não der também ninguém morre.

A GUARDA: Mas gostava de ver a Serra outra vez com muitas ovelhas?

Zé Camilo: Para eu as guardar já não. Mas sim, seria bem. Agora, cada vez que as vejo na televisão, até me vêm as lágrimas aos olhos.
A GUARDA: E esta arte de enramar o cajado?

Zé Camilo: O cajado? Andava com as ovelhas, na Primavera. O gado comia alguma coisa de manhã, assim que saía, depois acarrava debaixo das giestas e eu acarrava também. Como não tinha nada que fazer comecei a aprender a enfeitar os cajados. Este cajado é de 1970 e foi enramado pelas minhas mãos.
Também gostava de fazer as chavelhas para segurar os colares das ovelhas. Ainda ontem fiz uma.

A GUARDA: Foi homenageado em Alpedrinha durante o Festival da Transumância – Chocalhos. Ficou contente com a homenagem?

Zé Camilo: Fiquei muito, muito contente. Os pastores de uma comunidade de Las Hurdes, de Espanha, ofereceram-me o Ramo de Honra da comunidade. O presidente da Câmara do Fundão e os pastores da Serra da Estrela que estavam presentes também me homenagearam. Foi um momento muito importante para todos os pastores.

A GUARDA: E a Festa da Transumância de Fernão Joanes?
Zé Camilo: Eu nem sei. Só quero dizer que é uma pena grande não ver cá dois ou três rebanhos de ovelhas. Era mais bonito para os pastores, para o povo e para quem vem ver. Mas sem as ovelhas e sem os rebanhos a Festa da Transumância não é igual.