Entrevista: Daniel Martins - Presidente da Associação Hereditas


Daniel Martins, Presidente da Associação Hereditas, nasceu em Dezembro de 1983, na Guarda. Estudou na Guarda até ao 12º ano, altura em que foi para Paços de Ferreira frequentar um curso de Desenho de Móveis. Mais tarde foi para Tomar onde frequentou um curso de Artes Plásticas e História da Arte. Também frequentou um Mestrado em Coimbra, sobre “Sociologia, Cidades Culturas Urbanas”, mas acabou por não entregar a tese. Quase que não tem tempos livres mas, sempre que pode, gosta de fazer investigação.
A GUARDA: Quando apareceu e quais os objectivos da HEREDITAS - Investigação e divulgação do património cultural?
Daniel Martins: A Associação Hereditas é composta por um grupo informal de amigos que tem gosto pela História, pelo Teatro. Começamos por fazer representações nas feiras medievais. A partir de 2013 começámos a percorrer o país, com solicitações de muitos lugares. O projecto começou com o nome “Jogo do Pau”. A nossa única arte marcial portuguesa é o Jogo do Pau e, na Guarda, há um núcleo de pessoas que continua a praticar o Jogo do Pau. Há mestres de Jogo do Pau na Guarda. Eu não estou tanto nesse grupo, mas sim na parte da História. As coisas foram-se juntando, o desporto, a luta marcial e a História. E começou a criar-se um grupo muito interessante de recriação histórica e corremos todas as feiras medievais. A Associação Hereditas aprece em 2017, como maneira de formalizar uma necessidade que havia. É uma Associação de investigação e divulgação do património. Havia uma necessidade de agregar os investigadores para reforçar a parte da investigação e depois fazer o trabalho de a traduzir. Ou seja, não basta investigar mas, depois, dependendo do público que se pretende atingir a História é traduzida de formas diferentes. Já editámos alguns estudos em livros, fizemos as visitas guiadas ao Centro Histórico para as escolas, com um tipo de discurso completamente diferente. Ou seja, nós vamos adaptando aquilo que encontramos nos arquivos, na arqueologia, para diferentes públicos consoante aquilo que nos parece mais eficaz para eles perceberem.  A GUARDA: Quem é que faz ou pode fazer parte desta Associação?Daniel Martins: Membros fundares fixos, que estão permanentes, somos à volta de 12/13 pessoas. Mas nós não somos uma associação fechada, estamos sempre a envolver pessoas. Toda a gente, que tenha curiosidade pelo Património, pela História, é bem-vinda. Aqui o mais importante é colaborar. Nós temos uma missão social. As pessoas que actuam têm gosto pela História, pela actuação, mas não são vivem das artes. O mais importante é transmitir aos actores, em primeiro lugar, a História, para a poderem contar e depois, por sua vez, eles a poderem apresentar aos outros.  
A GUARDA: Porquê a aposta na investigação preservação e divulgação da herança patrimonial, material e imaterial?
Daniel Martins: Portugal é um País onde qualquer recanto está cheio de História. Só no Distrito da Guarda temos as marcas, desde os primeiros rabiscos em Foz Côa, às antas, até à arte contemporânea, o Teatro Municipal da Guarda. Temos todas marcas aqui. Mas temos de ver que Portugal só tem Ministério da Cultura há pouco tempo. A Guarda só tem um arqueólogo há pouquíssimo tempo. Apesar de termos um potencial histórico e patrimonial, que é um dos nossos maiores recursos, ao mesmo tempo temos vindo a assistir a um desgaste gigantesco e destruição de património, umas vezes por ignorância, por desconhecimento e outras até por conveniência económica. Uma vez destruído o património nunca mais se pode voltar a recuperar, nunca mais se pode rentabilizar. O património tem duas grandes funções: uma cultural e emocional, dando conforto e emoção às pessoas; e a outra física, porque pode ser um recurso económico. 
A GUARDA: As encenações têm sido uma das grandes apostas da Hereditas. Quais as encenações mais marcantes que já apresentaram?
Daniel Martins: A Câmara da Guarda, com a chancela do Américo Rodrigues, fazia representações com bastante qualidade, mas muito diferentes das que nós fazemos. Apostavam num actor profissio nal e mais dois ou três figurantes. Com a nossa Associação são sete, oito pessoas que actuam e temos outro contacto com o público. As encenações são muito centradas em temas específicos da História da Guarda. A primeira que fizemos foi ‘A Guarda intra muros’, que vai desde a história da Guarda, da sua refundação de 1199 a 1580, ou seja quando a cidade vive intra muros. Esta encenação foi repetida centenas de vezes e cada vez que a fazemos junta sempre muita gente. Depois temos a segunda fase que tem a ver com a construção da Sé. É apresentada dentro da Sé e falamos um pouco desde o início até à conclusão das obras. Ou seja, recriamos aquilo que teria sido a consagração da Sé, com passagem pelos terraços. Também temos a visita da época Filipina da histórica da Guarda, que também é outro período histórico muito importante, que é quando a Guarda sai fora de muralhas. A cidade extramuros cresce para o dobro em pouco tempo. Com estas representações reparamos que temos muita matéria para estudar e apresentar. Também temos a judiaria da Guarda e sabemos da sua importância, mas a nível físico e monumental não existe quase nada. Vamos também intervindo na preservação e na cautela com o património. Ainda há pouco tempo, na intervenção que vai ser feita na Quinta do Cabroeiro e uma parte que roça a Póvoa do Mileu, com grande sensibilidade patrimonial, nós consultámos o processo todo e, no tempo de consulta pública enviamos a nossa opinião e as nossas preocupações. No edifício da antiga Câmara, quando quiseram tirar as grades, tivemos de intervir até juridicamente, para impedir que isso fosse feito. Nós estamos sempre muito atentos a estas coisas.
A GUARDA: Como avaliam a divulgação da herança patrimonial no concelho da Guarda?Daniel Martins: Julgo que isso é um grande problema. Quando não se conhece o que se tem, não se consegue divulgar bem. Nós somos investigadores e é o nosso dia-a-dia investigar e conhecer, não conhecemos bem o património da Guarda. Se eu próprio, que estou no tereno, não consigo dizer que conheço bem a matéria-prima, o património, quanto mais quem está a governar, que tem outros interesses. Há tentativas, de preservar, conservar… mas às vezes não basta conservar. De que adianta conservar se depois da recuperação esse lugar fica fechado?O poder local, muitas vezes está preso ao que é monumental e no que se refere ao património imaterial pouco tem sido feito. O que está nos arquivos, na cabeça de tantos velhinhos que sabem sobre as tradições, merecia mais atenção. Há algumas iniciativas que vão conseguindo registar, pelo menos o que existe, e nós também fazemos isso. Vamos entrevistando algumas pessoas para saber o que é que elas têm para nos contar, mas é muito difícil. Falta muita investigação. Tinha que se investir muito dinheiro a investigar e muito dinheiro em preservar. 
A GUARDA: Como olham para a candidatura da Guarda a Capital Europeia da Cultura 2027?
Daniel Martins: Essa pergunta é curiosa, pois nós nunca fomos contactados. Houve uma reunião inicial em que estivemos presentes mas depois pediram o nosso nome sem nos darem a conhecer o projecto. Considero que o importante é verem se temos ou não valor, a nível cultural. Posso dizer que ninguém nos contactou, nem a Associação, nem a mim como privado, como investigador, como artista que trabalha nas artes, como pessoa que trabalha no turismo, também tenho uma casa de turismo. Eu trabalho entre o património, o turismo e arte contemporânea, é a minha vida, e nunca fui contactado nem eu, nem a Associação. A candidatura da Guarda a Capital Europeia da Cultura, para mim, nem sequer existe. Existirá para quem estiver a ganhar dinheiro com isso, para quem está envolvido.  
A GUARDA: Em termos futuros, o que é que a Associação gostaria de fazer?
Daniel Martins: Nós gostávamos de ter mais presença no Centro Histórico, ter porta aberta. Já temos uma sede. A Câmara cedeu-nos um espaço extraordinário no Torreão que serve para termos as nossas coisas, para nos reunirmos de vez em quando. Mas precisamos de fazer mais coisas, como por exemplo avançar para a formação. Dar formação dentro da área patrimonial. Nós tínhamos isto programado para este ano mas, com a pandemia, ficou tudo parado. Íamos dar esse passo de apostar na formação a grupos mais pequenos de cinco, seis pessoas. É importante alargar o conhecimento do património. Também gostávamos de intervir mais, ainda no poder local, na autarquia. 
A GUARDA: Durante a campanha a Associação entrevistou todos os candidatos. Qual o objectivo desta iniciativa?
Daniel Martins: Quisemos sondar os candidatos para ver se tinham alguma perspectiva, ou alguma coisa em relação ao património. Quisemos saber qual é a ideia deles em relação ao património; o que é que eles entendem de património; qual é o objectivo deles de trabalhar no património. Fizemos isto para pensar o património. Sobre as ideias do presidente eleito vamos ter de esperar. É da nossa responsabilidade também promover a colaboração. Temos de reunir, falar e depois logo se verá.Nas entrevistas, qualquer um dos candidatos nos pareceu minimamente sensível a esta causa e com capacidade para a poder desenvolver. Mas duvido que seja uma prioridade de qualquer um deles. Temos de ver uma coisa muito importante: o património deve ser direccionado para os locais, mas ainda não é. Ainda não há essa cultura. O património muitas vezes está direccionado para quem nos visita, e quem nos visita não vota cá. Pode ser uma fonte de rendimento, pode ser uma forma de deixar cá dinheiro, mas politicamente não sei se há essa sensibilidade. 
A GUARDA: A Guarda trata bem o património?Daniel Martins: Se falarmos do Centro Histórico, a Guarda nem trata bem, nem trata mal. Para nós, o facto de um edifício histórico estar abandonado, não é de todo mau. Vemos casos em que as intervenções destroem. Por isso, às vezes mais vale aguardar que haja mais sensibilidade, que haja a intervenção de um arquitecto. A pergunta que faz é muito complexa, porque fala da Guarda, quem é que manda na Guarda? A Guarda não depende só do Presidente da Câmara. Há muitos poderes, há muitos privados, mas há pouca sensibilidade. Por exemplo, um privado que tenha uma casa no Centro Histórico, vai tentar ao máximo que não se saiba que ele vai fazer obra. Porquê? Porque é preciso o acompanhamento do arqueólogo que tem de ser pago pelo privado. Claro que para o privado comum isto são dificuldades, pois vai perder dinheiro, vai perder tempo. Muitas vezes os privados não estão sensibilizados para a ideia de que o investimento pode valorizar em muito o seu património. A nível privado notamos que quando aprece alguma coisa, as pessoas tentam esconder. É muito importante que haja formação para inverter esta forma de pensar.