Está à porta o mês de Novembro que, como bem sabemos, principia, no calendário litúrgico, com o Dia de Todos os Santos, seguido do Dia dos Fiéis Defuntos.

São dias em que as flores se conjugam com a morte e a morte com a memória e a memória com a esperança, e a esperança com a glória e a glória com a ressurreição, para quem crê. As flores dos mortos conjugam-se com a vida e a vida com a eternidade. Nós, os mortais, nascemos para eternidade. Assim diz a fé de quem a tem. E eu tenho fé.
Vivemos num mundo de viagens. Vivemos a fazer viagens. Os astronautas viajam pelo espaço. Os astrofísicos, de olhos nos telescópios, viajam pelas galáxias de estrelas. Aviões sem número, aqui e ali, levantam e aterram a cada segundo carregados com viajantes. Os transatlânticos enchem os mares de gente a viajar. Os comboios do mundo deslizam pelos carris cheios de viajantes, também. E, nas estradas, não faltam veículos cheios de gente a viajar. Até, cada um, sossegado em casa, viaja no tempo da vida, nos pensamentos e nos sonhos. Porque também nos sonhos se viaja por mundos reais ou imaginários.
O espanhol Manuel Vilas, no romance “E, de repente, a alegria”, escreve: «A maior viagem é ao reino onde eles estão, os seres que amámos e que partiram e nos deixam para sempre expectantes.» O Dia de Todos os Santos, como o Dia de Fiéis Defuntos, é dia da maior viagem. Viajamos ao reino dos que amámos e partiram deixando-nos «expectantes». E, com fé, por eles e com eles rezamos a nossa existência aqui tão breve. Trazendo os nossos mortos para a nossa memória, tornamo-los presente. Como também escreve Manuel Vilas, «Se não os trouxermos, mais morrerão.» E o crente na vida depois da morte e na ressurreição bem pode acrescentar: se não lembrarmos os nossos mortos, também nós mais nos empobrecemos e mais morremos para a comunhão dos santos.
Sempre somos viajantes, nós os humanos. E bem se vê, nós mortais, viajamos para a morte. Mortais nos dizemos precisamente porque temos consciência da morte. Temos, se tivermos, porque, se pudermos, eliminamos a palavra no compêndio dos nossos dizeres, ou traduzimo-la por eufemismos, mais suaves e de todos os tipos, para o nosso dizer e para o nosso ouvir. «Partiu», «Deixou-nos», «Finou-se», «Já não está entre nós», «Foi roubado à vida», «Foi desta para melhor», «Foi para os anjinhos», «Já lá está», «Está no eterno descanso», «Entregou a alma a Deus», «Presta já contas a Deus». Quem, conforme os contextos ou as circunstâncias, nunca terá ouvido estas expressões ou outras, mais cruas e, mesmo, brutais, como «bater a bota» ou «ir viver com as minhocas»? Sempre somos viajantes, nós os mortais, nós os humanos, e sempre vamos viajando também pela linguagem, evitando cruzar-nos com a “morte” e com o “morrer”. Mas, viajantes e fugir da morte na linguagem e na vida, sempre a morte viaja connosco.
Contrastando com a fome, a miséria e a guerra de outros sítios, vivemos na sociedade de consumo em que a expressão «ir às compras» se tornou tão banal como as mais vulgares expressões do dia-a-dia. E, claro, a expressão traduz essa viagem de trocas, porque comprar é trocar. Compramos com azáfama e aos encontrões com outros que também andam por ali, às compras, numa pequena ou grande superfície. E, no esteticamente desenhado centro comercial, paramos aqui a olhar para uma montra, iniciamos, depois, nova viagem a outra montra e outra ainda, onde novamente paramos, encantados e desorientados com tanta oferta. Ofertas para comprar. Assim vamos conjugando o verbo «ir às compras».
E compramos, sem pensarmos que comprar é uma aposta no futuro. É isso o que nos lembra também Manuel Vilas na mesma obra: «Comprar sapatos é uma aposta no futuro. Alguém que vai morrer amanhã não compra sapatos. Não compra sapatos um doente terminal. Nem um suicida. Nem um desesperado. Comprar sapatos é um sim ao futuro.» Compramos e seguimos viagem, confortados e com a bagagem cheia, enquanto noutras terras, longínquas talvez, outras viagens se realizam, sem conforto nem bagagem, fugindo à miséria e à fome, ou às guerras. Fugas para viver deixando atrás a morte feita presença física, nos campos, nas cidades, nas casas.
Com as guerras a morte tem estado continuamente presente em nossas casas através de imagens terríveis que nos poderão recordar, de um modo trágico, que somos mortais e que a morte se encontra sempre ao nosso lado. Essas mortes são sempre mortes de outros ocorridas lá longe das nossas casas. Morte dos outros e morte na guerra. É o monstro, esse monstro que é a guerra e que tudo consome onde chega. Mas é morte de outros e de outros lugares.
Mas não sei se pensamos a morte. Verdade é, assim me parece, que nós, seres humanos, não sabemos pensar a morte. Ou não queremos pensá-la. Mas é verdade, também, que cavalgamos a vida com a morte lado a lado. O tempo é irresistível. Existimos e deixamos de existir. O tempo é portador da morte e, no silêncio dos momentos breves, a morte vem chegando, suave e pacificamente, ou repentina e tragicamente. A nossa vida encontra-se entre o ser e o não ser, tal como o sonho que é e não é, como lembra o dramaturgo espanhol Pedro Calderón de la Barca com a célebre peça teatral «A vida é sonho».
Não sabemos pensar a morte. E fugimos de a pensar. É doloroso e mete medo. Temos medo da morte e dela fugimos, real e mentalmente. É que o medo, directa ou indirectamente, é o medo da morte. E vamos às compras esquecendo esse medo. «Ir às compras» é uma aposta no futuro. Futuro que é sempre uma folha em branco onde a vida se vai vivendo na companhia da morte.
Vivemos tempos difíceis de compreender, agora que as guerras se têm intensificado de maneira alarmante, sem dúvida, e pululam por aí discursos apocalípticos, até fundados em textos sagrados, inclusive evangélicos, que pretendem infligir maior medo ainda anunciando a aproximação do fim do mundo. Fenómeno recorrente na história, o discurso apocalíptico dos adivinhos do fim do mundo, sempre falhou. O apocalipse anda por outras paragens.
Etimologicamente a palavra “apocalipse” significa «manifestação» ou «revelação». De quê? Toda a narrativa bíblica, desde a criação até às últimas palavras do Apocalipse de João, constituem-se como discurso apocalíptico que manifesta um fim. Não o fim do mundo, mas do Princípio actuante na história humana orientada para a Filiação Divina. Neste sentido, um verdadeiro discurso apocalíptico não é aquele que pretende decifrar uma catástrofe, seja ela um ou vários terramotos, uma ou várias intempéries, uma ou várias guerras. O verdadeiro apocalipse é o acolhimento humano daquela filiação que a pedagogia de Deus vai manifestando, na história da Humanidade e na história de cada um de que faz parte o futuro em que apostamos quando vamos às compras.
Vamos morrendo tal como vamos vivendo. Mesmo assim, porque não sabemos pensar a morte, ela aparece sempre como um desconhecido que surge, de muitas maneiras, mas como se nos conhecesse desde sempre. E conhece. E entra-nos em casa pela porta adentro sem pedir qualquer licença e sem aviso prévio. Como um ladrão. E nós sabemo-lo, mas fingimos não o saber. Contudo, se pensarmos que a morte é um encontro com Deus, então cada dia é um passo para Deus. Ou um passo com Deus. Um apocalipse continuado.
Essa é a realidade profunda das nossas vidas. Moribundos viajantes, caminhamos com Deus e para Deus. Se o medo é, em última análise, medo da morte, então o «não temais» evangélico significa não tenhais medo da morte porque morrer é nascer para outra vida, é nascer definitivamente para a revelação da Filiação Divina.
No Dia de Todos os Santos e no Dia dos Fiéis Defuntos, viajantes que somos, viajamos até ao cemitério a caminho da Vida. Viajantes que somos, nós, os mortais, que nascemos para a Eternidade. Já nela nos movemos com Fé e Esperança.
Guarda, 25 de Outubro de 2023