UM DESÍGNIO NACIONAL


«Por um Portugal amigo das crianças, das famílias e da natalidade»: assim se intitula um relatório divulgado há já alguns meses. O título, só por si, já contém implicitamente uma crítica às políticas seguidas em Portugal há dezenas de anos, em que a família tem sido sistematicamente uma instituição mal-amada, discreta ou explicitamente através de legislação dispersa. O relatório, onde se conjugam, e bem, os muitos vectores que tecem a complexidade da problemática, parte da actual questão demográfica e natalidade, passa pelo problema da sustentabilidade do sistema social, para apontar caminhos da construção do futuro.
Talvez tenha andado pouco atento, mas não achei que as principais personalidades políticas do espectro partidário nacional tenham visto no relatório uma preciosa oportunidade para mudarem de agulha, deixando a baixa política de mesquinhos horizontes feitos dos interesses de conquista do poder, e começarem a honrar a dignidade da política enquanto gestão e construção do bem comum, presente e futuro.
O texto, que muito construtivamente aponta para remoção dos «obstáctulos à natalidade desejada», sugere 27 medidas agrupadas em seis eixos de acção. Político, fiscalidade, harmonização trabalho-família, educação-solidariedade social, saúde e compromisso social.
Quando no passado mês de Julho o relatório veio a público, ele foi notícia nos meios de comunicação social que salientaram, particularmente, algumas das medidas preconizadas, mas nem sempre elas foram enquadradas na premência de uma política integrada de acção, definida a partir de prioridades claramente identificadas. São essas prioridades que pretendemos aqui salientar. Elas constituem como que princípios mobilizadores de uma mudança de mentalidades – dos partidos, dos dirigentes políticos e do simples cidadão.
A natalidade tem de ser uma preocupação central de todas as políticas sectoriais (1.ª prioridade); a política de natalidade tem de ter como referência um quadro político-social de valorização da família, enquanto célula-base da organização da vida em comum (2.ª prioridade); a política de natalidade pressupõe a mobilização de meios de acção e, ainda que vivendo em situação de crise económica, importa dar sinais, com urgência, da sua promoção (3.ª prioridade); a natalidade tem de ser encarada como um «desígnio nacional» em que todos os actores sociais - nacionais e locais - se sintam chamados a participar e participem de facto de forma estratégica e positiva, superando tacticismos tão habituais na nossa vida colectiva (4.ª prioridade); a política de natalidade deverá incluir mecanismos seguros de monitorização de modo a ir corrigindo a trajectória estabelecida ou melhorar processos (5.ª prioridade); finalmente, e será a 6.ª prioridade, uma política integrada de natalidade tem de desenvolver um quadro sistemático de informação e comunicação que alerte para a situação vivida e suas consequências, que demonstre o valor humano de gerar vidas humanas ao mundo como evidencie que o preço de não gerar filhos pode ser bem superior aos investimentos que possamos ter de fazer.
«Estratégia concertada de todos», «causa nacional», «compromisso partilhado», «desígnio nacional» são expressões, entre outras, que o relatório utiliza para acordarmos do sono em que nos temos deixado arrastar. Cada uma delas mereceria uma atenção própria. Fiquemo-nos pelo «desígnio nacional» que talvez possa incluir o significado das outras. Desígnio, que provém «signum» (sinal, marca), é o que foi ou deve ser designado, marcado para trazer à existência sob o domínio da vontade. Desígnio não é resignação, mas um projecto intencionalmente assumido para criar o futuro. Desígnio é decisão para agir. E, se o desígnio é nacional, é compromisso de todos os membros de uma comunidade. Um «Portugal amigo das crianças, das famílias e da natalidade» é uma comunidade política que designa, por vontade própria, superar a crise antropológica e cultural em que deixámos cair a família. Trata-se de trazer à memória individual e colectiva que a família é mais antiga que o Estado, que a família é o percurso natural do ser humano. Se se trata de «desígnio nacional», ele é «causa nacional» e implica «compromisso partilhado», do topo à base, das instituições políticas aos jovens cidadãos.
Relativamente às instituições políticas de topo, aguardamos que os partidos, e seus dirigentes, saibam finalmente ser capazes de ultrapassar o tacticismo serôdio da conquista do poder com que nos têm brindado e, em «compromisso partilhado», aprendam – e já não é sem tempo - que a acção política é o serviço do bem comum, presente e futuro. Se tal não acontecer, então bem poderemos perguntar-nos por que razão os dirigentes políticos não aprendem, nem com a experiência do passado nem com as exigências do futuro próximo.
Relativamente aos jovens casais, importará lembrar que a «cultura da vida» não se realiza só com condições materiais idealmente sonhadas que, talvez, nunca existam. Numa humana «cultura da vida» os homens e as mulheres, sacrificando-se pelos filhos, não são homens e mulheres da renúncia, mas homens e mulheres da oferta. Eles oferecem vida à vida futura. Aí onde as crianças não são um peso, mas a alegria da realização pessoal.
Nos primeiros anos da minha carreira de professor, era vulgar dizer-se que o fim último da educação consistiria em «fazer o adulto». A criança era vista em função do adulto e tudo era pensado sob a perspectiva dos valores vividos pelo adulto. E assim parece continuar. A vida colectiva seria bem diferente, cultural, política e socialmente falando, se a sociedade passasse a organizar-se em função da criança. Utopia que nem sequer conseguimos imaginar bem. Mas há momentos na vida colectiva, como na vida pessoal, em que importa ir aos seus fundamentos e pensar em mudar de perspectivas. Aquele por que Portugal passa poderá ser um deles.
Guarda, 11 de Novembro de 2014.