Nascido a 3 de Novembro de 1918, o jesuíta P. Manuel Antunes foi dignamente lembrado no primeiro centenário do seu nascimento,

inclusivamente neste semanário “A Guarda”. No próximo dia 18 de Janeiro completam-se 35 anos do seu falecimento. Ocasião para retomar um texto que redigira em 2018 e que fora ficando esquecido numa gaveta do computador.
Na Feira do Livro de Lisboa, despertou um dia a minha atenção um livrinho intitulado «Anedotas de Nemésio» do Professor Arnaldo Saraiva (n. 1939). Lembrando a figura de Vitorino Nemésio (1901-1978), aquele título só poderia conter uma imagem sãmente caricata daquele mestre da cultura que durante tantos anos nos entrou em nossas casas com o excelente programa televisivo «Se bem me lembro». Abri-o ao acaso e saboreei as situações hilariantes das duas páginas que me calharam então em sorte. Adquiri o pequeno livro sem mais o folhear. Só mais tarde vi que o livrinho não ia além de 39 páginas mas bem recheadas com pequenas narrativas em que o protagonista era, obviamente, «o Nemésio», como era geralmente referido aquele professor universitário, escritor, crítico e jornalista, nascido numa ilha dos Açores.
Cheguei a casa e, tendo sempre em mente a figura inesquecível de Vitorino Nemésio, li o livrinho de um só trago. E logo na página 14 encontrei a «anedota» n.º 29 que, com a devida vénia, transcrevo na íntegra. «Machado Pires encontrou o padre Manuel Antunes, jesuíta e professor de vasta cultura, mas de baixa estatura, e muito franzino, que se tornara docente da Faculdade de Letras de Lisboa graças ao empenho de Nemésio. Sabendo que estava perante um assistente deste, Manuel Antunes aproveitou a oportunidade para fazer o elogio do seu “mestre”, dizendo que Nemésio era uma pessoa de “muita substância humana”. Quando mais tarde falou a Nemésio nesse encontro e lhe reproduziu as palavras elogiosas de Manuel Antunes, ouviu Nemésio retorquir: - Ele disse isso, que eu tenho muita substância humana? Pois é, coitadito, ele é que tem muito pouca.»
Esta pequena história, que bem pode expressar a grandeza destes dois mestres, trouxe-me à memória o relato que me fizeram do primeiro encontro, bem casual, entre Vitorino Nemésio e Manuel Antunes (1918-1985) e que haveria de introduzir o padre jesuíta no corpo docente da Faculdade de Letras de Lisboa.
Foi algures, na capital, numa paragem de autocarro, quando Manuel Antunes ali se encontrava à espera de um transporte de regresso à residência onde se redigia a revista “Brotéria”. Chega Vitorino Nemésio e os dois iniciam um diálogo. Diálogo cultural, certamente, como de cultura eram aqueles dois homens que, na maior simplicidade, aguardavam a chegada de autocarro. Naturalmente, numa situação destas, mesmo contando com atrasos nos horários, a conversa entre os dois não terá demorado muito, mas o suficiente para Vitorino Nemésio ficar com tal imagem do franzino P. Manuel Antunes que, chegado à Faculdade de Letras, Vitorino Nemésio terá dito, entusiasmado, para colegas docentes:
- Acabo de encontrar um homem que é só espírito. Temos de o trazer para aqui. Fazem-nos falta homens como este.
De facto, Manuel Antunes viria a ser professor de muitas gerações de alunos, graças ao empenho resistente do professor açoriano Vitorino Nemésio.
Anos mais tarde, evocando ou não Vitorino Nemésio, o artista Almada Negreiros (1893-1970), depois de o ouvir, terá dito ao vê-lo afastar-se nas imediações do teatro Dona Maria, em Lisboa:
- Sim, senhor, vi hoje um homem que é só espírito.
Não tive a honra de ter sido seu aluno, mas pude ter a satisfação de me cruzar com ele nalgumas actividades académicas e na biblioteca da revista “Brotéria”. Lembro-me da fragilidade da sua compleição física. Modesta figura na aparência imediata mas que os primeiros contactos logo trariam à superfície a nobreza de um espírito superior encarnado naquele corpo pequeno e franzino de cujo rosto se salientava um olhar de finíssima perspicácia para auscultar os «sinais dos tempos». É o que bem o evidenciavam os escritos que ia publicando sobretudo na revista “Brotéria” com o próprio nome ou com variadíssimos pseudónimos. Encontra-se hoje à disposição dos interessados a sua «Obra completa» em edição da Fundação Calouste Gulbenkian formada por 12 volumes constituindo VII tomos: «Theoria: Cultura e Civilização» (I); «Paideia: Educação e Sociedade» (II); «Política» (III); «Religião, Teologia e Espiritualidade» (IV); «Estética e Crítica Literária» (V); «Correspondência» (VI) e «Biografia Ilustrada» (VII).
Não tive a honra de o ter como professor, mas tive a sorte de poder acompanhar o seu pensamento com os seus oportunos artigos publicados na “Brotéria” e nos seus livros (geralmente compreendendo artigos publicados naquela revista) cujos títulos ainda hoje me soam a música: «Do Espírito e do Tempo», «Ao Encontro da Palavra», «O mundo de hoje e a religião», «Indicadores de Civilização», «Grandes Derivas da História Contemporânea», «Educação e Sociedade», «Grandes Contemporâneos» e «Repensar Portugal».
Nos primeiros tempos da minha actividade como professor, na altura em que andava particularmente interessado com teorias filosóficas da educação que alicerçassem o meu trabalho de relação com os alunos, li um texto de Manuel Antunes intitulado «Uma educação para amanhã». Foi uma leitura feita em termos prospectivos e de interesse imediato e prático. Encontrei-o há tempos no Tomo II da edição da Gulbenkian onde aparece com a data de 20 de Abril de 1971. Li-o novamente, agora em termos retrospectivos, como quem procede a um exame do percurso profissional e pretende prestar contas ao tempo pedagógico. Aquele texto de há 50 anos, tirando uma ou outra expressão reflexo da conjuntura de então, parece ter sido escrito para os dias de hoje e bem pode continuar a ser lido e meditado pelos pais e educadores das nossas escolas. Porque há sempre que pensar «Uma educação para amanhã».
Transcrevo as primeiras frases: «Toda a verdadeira educação exige princípios e exige modelos. Sem princípios não pode haver orientação digna desse nome e sem modelos não pode existir humanização autêntica.» Que avance quem discorda!
Depois de preconizar o abandono da célebre trilogia comtiana «saber para prever para poder» propõe a trilogia «formar para imaginar para edificar», acentuando que o «edificar» e o «formar» deve ser visto na perspectiva do «edificar», «no sentido material da palavra» e «no sentido espiritual da fraternidade positiva», Manuel Antunes apresenta, com oportunos esclarecimentos, os seis princípios seguintes: «Primado da formação sobre a informação»: «Primado das ciências do homem sobre as ciências da natureza»; «Primado do permanente sobre o transitório»; «Primado da imaginação sobre a razão»; «Primado da socialização sobre a individualização» e «Primado da personalização sobre a massificação». Haja quem os assuma!
No final sintetiza o texto assim: «fé na Ciência»; «confiança na Imaginação»; «abertura à Transcendência». Com maiúsculas, diz o autor, porque «Implica a vontade de não ficar no domínio do empírico, do particularista, do fragmentário, e designa a intenção de visar o transcendental. Porque só o transcendental confere significado e sentido aos dados imediatos da experiência, só ele consegue unir o singular e o universal, o estrutural e o genético, o lógico e o concreto, o histórico e o meta-histórico.» Haja quem compreenda!
Mestre de um pensamento que do conjuntural nos faz entrar no essencial, este homem, «que é só espírito», foi também chamado um «pedagogo da democracia e da liberdade». Das páginas do «Repensar Portugal», escritas na década de 70 do século passado, o P. Manuel Antunes bem pode continuar a agitar as nossas consciências com a pergunta feita há várias décadas: «E a revolução moral?» Haja quem responda!
Guarda, 7 de Janeiro de 2020