Foi num encontro casual, daqueles que acontecem todos os dias. Um encontro com um conterrâneo, alguns anos mais adiantado que eu na idade.

Os cumprimentos foram os habituais e a conversa sem interesse de maior, como sucede em ocasiões semelhantes. Não falámos nem do tempo do frio nem da chuva do dia. Isso era a conversa de um grupo de três cavalheiros que se encontravam bem perto de nós. Nós falávamos de outro tempo, daquele tempo decidido pelos relógios, sincronizados com os movimentos no universo do nosso sistema solar. Não sendo nós nenhuns jovens, o tempo cronológico revestiu-se facilmente de outro tempo: o tempo psicológico.
- O tempo passa depressa. – dizia um.
- O tempo passa cada vez mais depressa. – acentuava outro.
- A culpa é dos relógios modernos. – aventou o meu conterrâneo.
- Como assim? - perguntei eu, intrigado com a atribuição de «culpa» à modernidade de uma máquina. E explicou, jocosamente, mais ou menos da seguinte maneira:
- Outrora os relógios eram poucos e era necessário dar-lhes corda. A gente ia-se esquecendo e os relógios paravam. Parava o relógio, parava tempo. Agora os relógios estão por todo o lado, são electrónicos, e não dependem da corda. Como eles não param, também não pára o tempo. E assim vamos sendo empurrados pela electrónica de trazer no bolso.
Ri com vontade da imagem que arranjou para dizer que na infância e juventude o tempo passa mais devagar do que numa idade mais avançada. Ou então o meu conterrâneo estava só a dizer que as novas tecnologias modificaram a nossa percepção do tempo. Tanto para os mais velhos, como para os mais novos.
O caso deixou-me a pensar. O tempo dá sempre que pensar! Então o tempo tem velocidade? O tempo? Não o tempo psicológico que esse, sim, tem velocidade variável conforme a idade e o estado do momento de cada um. Mas o tempo em si tem velocidade? Se «passa», tem velocidade. Seremos companheiros do tempo passando nós com o tempo que passa? Mas por onde passa o tempo? E para onde se dirige o tempo? Saberemos de verdade o que é o tempo? Verdadeiramente nós passamos com toda a facilidade do tempo cronológico dos relógios e dos astros para o tempo psicológico de trazer por casa. Mas o tempo em si, sem mais, o que é? O que é o ser do tempo? Pertencemos ao tempo ou é o tempo que nos pertence?
Desde os primórdios do pensamento pensado sempre o tempo se foi passeando, fugitivo, pelo campo da Filosofia como uma espécie de mistério. Virá à memória a observação, certeira, das Confissões de Santo Agostinho: «Quid est ergo tempus? Si nemo ex me quaeret, scio; si quarenti explicare velim, nescio.» A frase é conhecida e os leitores já terão passado por ela alguma vez, mas aí fica a tradução para os mais esquecidos: «Portanto, o que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; mas se o quiser explicar a quem me pergunta, já não sei.»
Com a revolução científica iniciada no Séc. XVII, o tempo ganhou outro estatuto. Bem o saberemos todos: a letra “t”, símbolo do tempo, passa a figurar na expressão matemática das leis, associado a outras letras simbólicas, seja o “v” de velocidade ou o “m” do movimento. E lá veio Newton a distinguir o tempo comum, aparente e vulgar, do tempo absoluto, verdadeiro e matemático. Satisfeitos? Importa não sossegar.
Verdade é que somos particularmente despertados por esta radical pergunta naquelas alturas – alturas do tempo – em que somos mais abanados pelo «passar» do tempo, como nas mudanças de ano. Mudamos de ano: o tempo «passou». Tempo «cronos» dos nossos cronómetros que medem o movimento do tempo. Medem o movimento do tempo ou das coisas no tempo? E o que são as coisas em movimento no tempo? Os mais avisados lembrar-se-ão de Aristóteles que define o tempo como «o número do movimento segundo o antes e o depois.» Mas o tempo continua a não nos dar sossego!
Calamos a inquietação brincando com dígitos. Escrevíamos 2019 e passamos a escrever 2020. Mas, passado o fogo-de-artifício do champanhe de uma noite, logo regressa o desassossego do tempo a passar por nós a fugir.
Se folhearmos um livro de divulgação científica parece poder concluir-se que a investigação contemporânea conduz à desintegração da ideia de um fluxo universal do tempo. Parece antes poder falar-se de uma espécie de arquitectura topológica de tempos: desde o tempo que pertence exclusivamente à consciência humana madura até ao tempo das partículas que viajam à velocidade da luz, passando pelo tempo biológico da realidade de todos os seres vivos, pelo tempo físico da realidade do universo astronómico e pelo tempo da realidade subatómica das partículas elementares. Aí, onde desaparece a diferença entre o passado e o futuro e o próprio presente se esvai. Parece que o tempo se dissolve e o “t” do tempo das leis de Newton perde sentido. É o mundo da física quântica. Continuamos enredados no e pelo tempo.
Há tempos – não sei falar sem ser no tempo -, em conversa telefónica com um grande amigo meu, não sei bem a que propósito, saiu-me esta:
- Estamos na eternidade desde que nascemos. O tempo em que vivemos é já um “momento” da nossa eternidade. – e logo ele comentou:
- Mais uma das tuas que me deixa sem palavra. Essa também me vai fazer pensar.
Não terei sido eu o primeiro a ter tal pensamento. Filósofos e teólogos já terão dito o mesmo, por estas ou outras palavras. Já Platão escrevera, no livro Timeu, que o tempo é o «ícone móvel da eternidade.» Bela definição de tempo e nós com ele: Moramos na eternidade expressada visivelmente, à maneira platónica, em «ícone móvel».
Eternidade «antes» e eternidade «depois». Este é o lugar existencial de cada um de nós: um espaço de liberdade entre a eternidade «anterior» e eternidade «posterior». Linguagem temporal, certamente. Mas não temos outra. Vamos morrendo a cada dia. A morte está no tempo «antes» e não no tempo «depois». O «agora» do presente é o tempo da oportunidade.
Razões teriam os gregos que distinguiam o «chronos», o tempo que flui direccionalmente e que tudo parece devorar, sendo por isso representado por uma figura de idoso, e o «kairós», o tempo favorável, o tempo da oportunidade, que é representado pela figura de um jovem. O tempo da vida humana é mais do que «chronos». É «kairós». Apoiados no grego podemos dar, atrevidamente, um passo mais.
Para além de «chronos» e «kairós» os gregos utilizavam «aíôn» para se referirem ao tempo sagrado e eterno. Chegados aqui, a pergunta adequada não será «o que é o tempo?», mas antes «quem é o tempo?». Se o que acima fui dizendo tem algum sentido, o ser humano é a síntese das três formas temporais gregas: somos tempo contado, chronos; tempo favorável e de liberdade, kairós; tempo sagrado e eterno, aíôn. O tempo somos nós! Não o entendemos como não nos entendemos a nós próprios.
Estamos a entrar em mais um momentozinho do nosso ser eterno. Bom ano de 2020. Seja ele kairós, tempo oportuno e favorável a uma «conversão ecológica», conforme o apelo do Papa Francisco na Mensagem para o 53.º Dia Mundial da Paz que se celebra a 1 de Janeiro.
Guarda, 26 de Dezembro de 2019