Tempo de Férias


Comecei a ouvir o mar antes de o ver. Não foi porque alguém me vendasse os olhos para depois me surpreender com a presença das ondas a bater na areia, nos rochedos ou nas arribas. Não, também não foi porque ele se escondia atrás das dunas antes de eu as galgar para depois me espraiar perante a sua imensidão.
Não me lembro da origem nem como veio ela parar a casa dos meus pais. Mas comecei a ouvir o mar numa enorme concha que encostei aos meus ouvidos. Disseram que a concha tinha vindo do mar e com ela viera a música das ondas. E sei bem, podem acreditar, que os sons, que então ouvia nessa concha de maravilhoso encanto, eram raios de luz a dar vida à minha imaginação infantil que tão harmoniosamente sabia conjugar os verbos ouvir e ver, os dois verbos, vim a saber depois, tão bem conjugados na nossa cultura ocidental dada a confluência da visão das formas da filosofia grega e da palavra de Deus que se revela na longa história das vicissitudes humanas e, finalmente, da Encarnação do Seu Verbo.
Ouvindo o mar na concha de um molusco comecei a ver a sua imensidão na vastidão silenciosa do céu estrelado que se estendia sem fim no espaço da curiosidade e admiração de menino de uma aldeia na Beira. Foi assim que aprendi a ver o mar ouvindo a música da concha e o silêncio das estrelas.
Então, ainda não sabia conjugar o mar com férias e o tempo era de contemplação. Afinal, o Verbo de Deus também falava pelas estrelas e pelo marulhar das ondas do mar imaginado!
As férias ainda não se me conjugavam com o mar, mas elas eram uma festa. Isso sim, as férias conjugavam-se perfeitamente com a etimologia da palavra. É que lá longe, na língua latina, férias, feriado e festa, possuem o mesmo berço. Mas isso vim a sabê-lo mais tarde, como vim a saber que as nossas «feiras» actuais com que chamamos, na nossa língua, a cinco dias da semana, possuem o mesmo étimo. Mas lá longe, na lonjura da minha infância, férias eram, de facto, uma festa, sem mar mas com um céu cravejado de outras areias suspensas no espaço. A escola ensinou-me, mais tarde, que a minha aldeia era um pequeno ponto na vastidão da Terra, ela também um grão de areia a boiar no espaço sem fim.
Eram então uma festa, as férias, mesmo só com a música de uma concha de molusco.
Hoje parece que não há férias sem as areias do mar salgado. As areias do céu estrelado já não brilham como soía. Tudo é composto de mudanças, como canta o poeta inspirado nos sábios gregos. Tudo flui na leveza do tempo, e tenho dúvidas que as nossas férias de hoje continuem a ser uma festa. E não é preciso sequer lembrar as férias de quem as não tem, as férias de quem nunca as teve ou as férias de quem não sabe, tão pouco, o que isso é.
Refiro-me às férias do nosso conforto, do nosso consumismo. Aí as férias deixaram, muitas vezes, de ser festa, para serem preocupação, se não mesmo um problema, para já não falar em situações conflituosas que a antecâmara ferial esconde, na quantidade de coisas que é preciso decidir e preparar. Vamos para aqui ou para ali? O lugar já é uma tortura. As coisas começam a ficar tortas: se uns optam pelo «aqui», outros pelo «ali» e outros ainda alvitram um «acolá» mais longínquo. E haverá bom tempo? E as filas no trânsito? E as multidões da praia com tanta gente como as suas areias? E haverá dinheiro? Se não há, poderá haver mais um crédito a juntar a tantos outros. É só mais um! E assim, as férias não são só um problema de hoje. Serão um problema de amanhã. Quando chega a hora da fechar bem as portas de casa, não vá aparecer visitante indesejado, já a discussão azedou, a família se dividiu e há mesmo quem não receie em dizer bem alto: «já perdi o apetite de férias e de tudo».
Férias assim já não podem ser uma festa, mas um pesadelo que poderá continuar no regresso e no tempo pós-ferial. Feriámos, mas não descansámos! Atropelámos a vida em vez de a festejarmos!
Verdadeiramente, se naufragamos, muitas vezes, em mares que não deveríamos ter navegado, e a pretender viver vidas que não são as nossas vidas, é porque não sabemos contemplar o céu estrelado nem ouvir o mar no silêncio do espírito. Sabemo-lo bem: «é em nós que é tudo, ali, ali é vida é jovem e o amor sorri», como canta Pessoa. As férias não podem ser só no Verão. Mais importante que as fotografias trazidas de uma viagem é sermos capazes de inserir as férias na própria vida e fazer dela sempre uma festa. É em nós que é tudo.
Importa limpar o olhar para podermos ver a verdadeira cor das coisas, e afinar o ouvido para ouvir a música do mundo e os gemidos da criação. Então o tempo não será só o tempo atmosférico que chega a preocupar-nos quando partimos «para férias», nem só tempo cronológico do calendário e do relógio que tão depressa passa quando nos encontramos «de férias». Então o tempo será sobretudo «kairos», tempo oportuno para saborear a vida e dar-lhe plenitude. Mas esse não depende do calendário nem das correntes atmosféricas. Ele é a concha por onde sempre podemos ouvir o mar e contemplar o céu pejado de estrelas. Boas Férias!
21 de Julho de 2016