Conta-se, assim escreve Aristóteles (384-322 a.C.), que alguns forasteiros, pretendendo visitar Heráclito (n. 504-500 a.C.),

terão ficado surpreendidos ao verem o famoso sábio a aquecer-se junto às chamas do forno de um padeiro. Param à porta com natural hesitação, enquanto olhavam uns para os outros como que a interrogarem-se sobre o que haveriam de fazer. Mais surpreendidos terão ficado ainda quando Heráclito, que entretanto dera pela sua presença, os convida a entrar com três palavras gregas que assim se têm traduzido: «Também aqui estão presentes os deuses.» Lendárias ou não, as palavras do sábio grego ficaram para a história e são frequentemente citadas. Heidegger (1889-1976), o filósofo da Floresta Negra, fez um eloquente aproveitamento desta singela narrativa na conhecida “Carta sobre o Humanismo” que acabo de revisitar.A narrativa coloca em confronto a expectativa que aqueles forasteiros alimentavam e a decepção com que terão inicialmente ficado. Esperariam encontrar Heráclito numa situação de excelência, como sábio que era, e foram encontrá-lo numa situação bem comum. O que viam pertencia ao mundo do mais banal da vida quotidiana que, para eles, nada teria de extraordinário. Diante de uma situação tão corriqueira e nada condizente com a fama da excelência da sabedoria de Heráclito, ficam desiludidos, hesitam e pensam em regressar às suas terras, dando por inútil a viagem. - Entrai – ter-lhes-á dito o sábio grego – porque também aqui estão presentes os deuses.Pelo caminho haviam recordado alguns pensamentos de Heráclito que passavam de boca em boca e que tantos consideravam obscuros. Se se entendia facilmente que «Não é possível tomar banho duas vezes na mesma água de um rio.» e que «Tudo flui», bem gostariam de entender o alcance do pensamento daquele sábio quando anunciava que «O Senhor cujo oráculo está em Delfos nem diz nem esconde nada do que quer significar. Indica-o apenas por sinais.» Que «sinais» poderiam ser estes se o oráculo «nem diz nem esconde nada do que quer significar.»? Aqueles forasteiros desejariam entrar, certamente, na única sabedoria que, segundo aquele sábio, consistia em «conhecer a Inteligência que tudo governa e que tudo penetra.»É verdade que Heráclito se aquecia ao fogo e os forasteiros bem saberiam que aquele sábio grego propalava que a essência de todas as coisas consistia no fogo e que o fogo é todas as coisas numa constante tensão de contrários. Porém, aquele fogo do forno de um padeiro não teria a ver – assim terão pensado - com aquele “Fogo” que seria a expressão da identidade do “Uno Eterno”, da «Inteligência que tudo governa e que tudo penetra» e que, alheado a honras e poder, trazia obcecado aquele famoso sábio.Parece claro que aqueles forasteiros não estavam em condições de entender que a sabedoria professada por Heráclito nada tinha a ver com as extravagâncias inusitadas que ansiosamente esperavam encontrar. Perante o inesperado, até se terão sentido enganados, como enganados andariam aqueles que davam ouvidos aos quatro ventos que espalhavam por todo o espaço helénico a grande sabedoria do Heráclito. Depois, lembrando que «Tudo flui», que «Não é possível tomar banho duas vezes na mesma água de um rio», e que, conforme também assinala o mesmo sábio, «Os burros preferem a palha ao ouro», até para não ficarem na história com a fama de asnos e de grande falta de cortesia, concluem que seria aconselhável corresponder ao convite. Talvez aquele estranho quadro pudesse ser um daqueles sinais por que fala «O Senhor cujo oráculo está em Delfos.» E, mais cépticos do que entusiasmados, entraram.Ignoramos como decorreu o encontro. Nem podemos saber se aqueles forasteiros teriam ficado esclarecidos ou ainda mais confusos com as lições daquele sábio cuja fama andava sempre acompanhada com o epíteto de «enigmático» e «obscuro».Conta uma tradição que Heráclito terá oferecido ao Templo de Artemisa em Éfeso, essa cidade-estado da antiga Ásia Menor, hoje Turquia, um exemplar da sua obra “Sobre a Natureza”, mas o rolo de papiro acabaria por ficar reduzido a cinzas em 365 a. C. no incêndio ateado por um tal Heróstrato. Numa ânsia incontida de fama e vontade de ficar na História a qualquer preço, no Verão daquele ano, Heróstrato avança sorrateiramente pela calada duma noite e, espiando os roncos dos dorminhocos guardas, pega fogo aos tecidos que adornavam um salão. Em breve o fogo se propaga a todo o Templo. Depois, com orgulho, vangloriava-se publicamente do seu feito até ser condenado à morte e os cidadãos proibidos de pronunciarem o seu nome. A cultura ficou sem uma das primeiras obras de filosofia e hoje só possuímos de Heráclito alguns fragmentos, umas máximas tão breves como estranhas e enigmáticas. O incendiário, porém, ficou na história pelas piores razões. É ele que dá o nome ao distúrbio psicológico de quantos, por um desejo patológico de fama, de popularidade ou de glória julgada eterna, enveredam por caminhos do terror ou do exibicionismo a todo o preço, encontre-se ele nos areópagos do poder ou nos canais mediáticos de uma qualquer rede social. É a síndrome de Heróstrato. É a fama herostrática. Longe de tais areópagos se encontrava Heráclito quando é visitado por aquela espécie de turistas ansiosos de novidade. E o que encontram foi um homem simples que havia renunciado à herança da categoria de rei da cidade em benefício do seu irmão mais novo para viver a tensão inerente aos momentos corriqueiros do dia-a-dia, à banalidade dos acontecimentos diários que se esvaem como as águas de um rio onde ninguém se pode banhar duas vezes. A vida é luta permanente de opostos, dizia: dia e noite, luz e trevas, vigília e sono, alegria e tristeza, vida e morte. É a doença que torna amável a saúde, é o trabalho que torna aprazível o descanso, é a fome que dá sabor ao alimento, é a ausência que gera a saudade da presença. «Também aqui estão presentes os deuses», como presentes estão no fogo do forno de um qualquer padeiro onde um sábio, enquanto mata o frio, recita enigmaticamente a linguagem de um saber para uns quantos forasteiros meramente curiosos ou necessitados dos sabores da vida.Seria talvez essa a mensagem veiculada por aquelas palavras de Heráclito: ler os sinais e descobrir – construindo – o sentido oculto da vida quotidiana. Nela e nas contradições do suceder corriqueiro factual, também «estão presentes os deuses», também aí transparece o divino, que, de modo misterioso, mas também admirável e silencioso, impregna todas as coisas. É a força explosiva do “Uno Eterno”, em que, talvez, se possa compendiar a filosofia, dita obscura, oferecida à deusa Artemisa do Templo de Éfeso.Não há felicidade perfeita neste mundo dos humanos, mas também não haverá, certamente, a absoluta adversidade. Nos limites que nos confinam, nas fragilidades que sentimos, nas rotinas da vida diária, nas contradições do tempo e nas agruras vividas, «Também aqui estão presentes os deuses». Também aí se manifesta o divino. Quem o ensina é um velhinho mestre de vinte cinco séculos de idade. Ele continua a aquecer-se no forno de padeiro. E sempre convida qualquer forasteiro a entrar e a saborear o Fogo da Vida. Guarda, 18 de Fevereiro de 2021