Vale a pena recordar para nunca esquecer. Foi em 2 de Julho de 2018.

Os amantes do futebol tê-lo-ão ainda na mente. E até os menos entusiastas pelas competições internacionais do mundo futebolístico talvez possam também lembrar. Foi em Rostov-on-Don, na Rússia. Naquele dia disputou-se ali o jogo dos oitavos-de-final do Campeonato do Mundo de Futebol entre a poderosa selecção belga, considerada favorita, e o humilde grupo japonês. Contra todas as expectativas, o Japão esteve a ganhar por 2-0 até ao minuto 69.º, por 2-1 até ao minuto 74.º, momento em que a Bélgica empatou. E o empate desfez-se com o terceiro golo da equipa belga. Foi já no último instante do jogo. Era o minuto 4.º após os 90 regulamentares. Um duro golpe para o grupo japonês. Com ele a simpática formação asiática confirmava o adeus à prova. Ou talvez não.Ao perder por 3-2 com a Bélgica, o Japão despediu-se da competição mundial de futebol, mas correram mundo as imagens de comportamento cívico com que terminaram a prova. Apesar da tristeza do momento, a equipa japonesa é saudada calorosamente pelos adeptos que, antes de abandonarem as bancadas, ordeiramente e de sacolas na mão, recolhem todo o lixo que eventualmente ali terão feito, como já havia acontecido no jogo com a Colômbia que o Japão vencera por 2-1. O mesmo fizeram os jogadores e elementos da equipa técnica nos balneários que abandonaram tão limpos como os encontraram. Mas não só. Em russo deixaram ali um pequeno cartaz. Era de despedida e de agradecimento. Também correu mundo aquele “obrigado” de desportivismo e civismo exemplares. E o exemplo logo ali chegou a dar fruto. Horas depois, foram os senegaleses a limpar as bancadas antes de abandonarem o estádio depois do jogo entre o Senegal e a Polónia que a equipa africana vencera por 2-1. As imagens correram mundo e muita gente foi perguntando, com assinalável admiração, onde se encontrava a fonte de tão extremado civismo no centro de uma competição futebolística onde, tantas vezes, a racionalidade parece esvair-se e as mentes ficarem entregues à cegueira da paixão. Por isso não foram só aquelas imagens que correram mundo. Foi também a informação de que não se retratava ali somente a “cultura do futebol”. Ela espelhava a “cultura japonesa” desenvolvida numa escola do bem colectivo em que a preocupação com os resíduos faz parte da consciência cívica.Os japoneses, naquele dia, diziam adeus à competição, mas conquistaram o campeonato mundial do civismo e da nobreza desportiva! Bem precisa o futebol português de recordar a lição. O futebol e o cidadão português.O Sporting foi o vencedor do campeonato português de futebol. Já tinham passado 19 anos após a última vitória nessa competição. Naturalmente a euforia foi grande entre sócios e adeptos que a pandemia Covid-19 afastou das bancadas. Porém as imediações do estádio de José Alvalade ficaram repletas com um mar de adeptos nesse último jogo que o Sporting venceu por 1-0. As ruas da capital entre o estádio e a praça Marquês de Pombal encheram-se de entusiastas e aguardaram horas à espera da passagem e chegada dos vencedores. Finalmente lá chegaram àquela praça central de Lisboa onde até o leão do Marquês terá enrouquecido com os uivos de loucura a associar-se aos cânticos da multidão em festa. Eram quatro horas da manhã. Tinham passado umas boas horas após o términus do jogo. Horas demais para tanta gente em euforia que tinha que ocupar com qualquer coisa aquele tempo de espera.Eu vivi a vitória em casa. Pela televisão, acompanhei o jogo, vi a bola a entrar na baliza e vibrei com a vitória. Depois acompanhei a demora dos jogadores no estádio, a demora na sua saída, a demora na partida rumo ao leão do Marquês de Pombal e a alteração do percurso dos autocarros da glória. Entretanto chegavam informações e imagens que iam manchando a alegria entusiástica da vitória. Ainda dói recordar.Há cerca de um ano, numa das minhas crónicas, discretamente manifestei a minha simpatia pelo Sporting. A opção foi “oficializada” intimamente e com exterior manifestação quando se extremava a excelência dos “cinco violinos” de que ainda hoje o SCP se continua a orgulhar com inteira razão. Uma simpática leitora, sabendo-me sportinguista, teve a amabilidade de me oferecer um exemplar dos Estatutos do Clube, em edição de 1947, pertença de um histórico sportinguista da Guarda. Era Presidente da Mesa da Assembleia Geral o Doutor Adelino da Palma Carlos. Sendo estes os Estatutos presumivelmente em vigor ao tempo da minha opção clubística, li-os com curiosidade e fervor sportinguista e reli-os agora, novamente, enquanto recebia as imagens daquela noite memorável. Ali consta, logo no Ar.º 4.º que o SCP visa «o engrandecimento do desporto nacional» e que, conforme o Art.º 5.ª, o seu símbolo é «o leão, significando a força, a destreza e a lealdade, que devem constituir apanágio da sua actuação desportiva.» Ainda lá não consta o lema «Esforço, Dedicação, Devoção e Glória», mas estava lá a realidade significada. O lema vinha a caminho. E, no dia seguinte, aquelas imagens tristes enchiam as páginas dos jornais e os noticiários televisivos. A acompanhá-los o passa-culpas entre os responsáveis de instituições várias. Aquela equipa, jogadores e técnicos, não mereciam tal espectáculo.Depois… Bem, depois foi a recepção na Câmara Municipal de Lisboa. Fernando Medina, Presidente, dirigindo uma «palavra especial para o treinador, uma das grandes figuras desta conquista, o Rúben Amorim… um alfacinha de gema» que considera «um hino aos clubes de Lisboa, Casa Pia, Belenenses, Benfica e Sporting», reconhece que o «Sporting é, com inteira justiça, o campeão nacional de futebol.» Já o Presidente Frederico Varandas bem poderia ter dispensado a ironia com que referiu os outros dois clubes «rivais, duros, adversários difíceis» e aquele «obrigado» que lhes dirigiu, bem poderia ter sido um “obrigado” sincero, cordial e civilizado como o da equipa japonesa no Campeonato do Mundo de 2018.Mas uma coisa apreciei no discurso do Presidente Sportinguista. Disse ele que, vivendo um momento histórico, «o Sporting não pode desperdiçar a oportunidade de mudar o paradigma do futebol português.» Entenda-se lá o que se entender por «paradigma», é geralmente reconhecido que muito há a mudar no futebol português, a começar pelo comportamento dos seus dirigentes máximos, particularmente dos clubes cimeiros. Há muito a aprender com o «paradigma» comportamental da equipa japonesa. Não só com o sentido da gratidão e a limpeza do lixo dos espaços físicos, mas também com a nobreza nas atitudes e a cordialidade nas palavras. Vamos a isso, Sr. Frederico Varandas. Se conseguir contribuir, de facto, para se mudar de «paradigma» no futebol português, terá ganhado, nessa altura, outro campeonato bem mais difícil de vencer. Já tem um bom exemplo na ponderação e na humildade do treinador Rúben Amorim. Também ele soube inculcar humildade nos seus jogadores. E com ela ganharam.Guarda, 27 de Maio de 2021