O Leal Conselheiro e o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, de D. Duarte


“A boa amizade de entre marido e mulher e outros verdadeiros amigos disto sentem o contrário, porque, quanto ao primeiro, não passam tal contrariedade de entre o entender e vontade, porque ambos são dum acordo; quanto praz ao coração de amar, tanto assim julga o entender que é bem de se fazer.”D. Duarte, Rei de Portugal in Leal Conselheiro (cerca de 1438)
D. Duarte, o décimo primeiro rei de Portugal, embora tivesse governado apenas durante cinco anos, de 1433 a 1438, teve um papel primordial em várias matérias do reino. Também conhecido pelo cognome de “O Eloquente”, quer dizer, uma pessoa culta com o dom da palavra, D. Duarte continuou a obra centralizadora do seu pai, D. João I. Em 1434, promulgou a Lei Mental, assim designada por já andar na mente do seu pai e antecessor, o que permitiu à Coroa reaver muitas terras doadas à nobreza, pois aquelas só podiam ser herdadas pelo filho varão primogénito. Caso não estivessem reunidas estas condições, as terras voltavam para a Coroa.Foi ainda o responsável pela compilação de toda a legislação do reino e pela continuação da expansão marítima portuguesa, coordenada pelo Infante D. Henrique, o qual, finalmente, possibilita a dobragem do Cabo Bojador. Contudo, embora contra a sua vontade, é responsável pelo Desastre de Tânger, na continuação da conquista de África, em que morreram milhares de portugueses, incluindo o Infante D. Fernando, morto no cativeiro.Ao invés da maioria dos monarcas, D. Duarte era um homem culto, como o demonstra as duas obras que nos deixou: o Leal Conselheiro e o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela.O Leal Conselheiro é um livro que trata da Moral e da Ética e foi redigido a pensar nos membros da corte e da nobreza. De acordo com o próprio autor, o livro foi escrito no seguimento de um pedido da própria rainha, Leonor de Aragão, e resultou de uma compilação de escritos feitos ao longo da sua vida que se enquadram no tema geral. Trata-se de um manual prático com intenção didática, um guia a seguir pelos membros da corte e também pela nobreza, um “ABC da lealdade” nas suas próprias palavras, que abarca temas tão diversos como o amor, a amizade, a vida familiar e matrimonial, os sentimentos, os vícios e as virtudes.A obra, como compilação que é, não possui uma estrutura pré-definida, resultando antes numa série de reflexões* realizadas em várias épocas sobre variados assuntos, ainda que obedecendo ao tema da moral e da ética. Revela, contudo, o pensamento intimista e profundo do rei D. Duarte e que compete aos reis ensinar, em virtude da sua maior prudência e sabedoria.Deve referir-se que estes tratados de vícios e virtudes eram comuns na literatura da época. Sabe-se que D. Duarte tinha na sua biblioteca particular algumas obras deste género, o Caderno das Confissões de João Calado, o Pomar das Virtudes, de André Paz, e o Livro das Confissões de Martim Perez, para além de outras, então em voga na Europa.D. Duarte tratou particularmente dos temas da Tristeza e da Saudade, questões recorrentes e transversais na literatura portuguesa, que define como problemas de espírito e indizíveis, devendo cada um consultar o seu coração para os definir, dado que não é matéria que se encontre nos livros. Destaca-se a análise que nos legou do “humor merencórico”, hoje entendido como depressão, cujas fases por que passou descreveu com grande realismo, sobretudo quando tomou conta do reino, após a partida de seu pai, D. João I, para Ceuta.O Leal Conselheiro é considerado por muitos investigadores como o primeiro ensaio filosófico escrito em língua portuguesa. O Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, deixado incompleto com a morte do rei, define-se como um simples tratado de equitação, então em voga por toda a Europa. Tem um objetivo didático, onde se aliam as preocupações práticas da arte de cavalgar com reflexões psicológicas e morais para proveito dos cavaleiros. O exercício da razão é assumido por D. Duarte como base para a disciplina necessária para o domínio de sentimentos desordenados como, por exemplo, o medo. Fundamentalmente, retrata a importância da Cavalaria e da sua conduta moral, espiritual, física e social.É um dos manuais mais antigos sobre hipismo e justa equestre medieval.
* Alguns exemplos do seu pensamento:- “Mas entre aqueles casados que esta mui perfeita maneira de amar afirmada por grande experiência bom conhecimento que um do outro tem havida, os ciúmes são de todos escusados ou tão levemente sentidos que a cada um não fazem alguma torvação ou empacho.”- “E se algum sente trabalho, ou amiúde se torva por amor que tenha dalguma pessoa, se não é por manifesto mal, perigo ou perda que vem a ele ou a quem assim ama, saiba que tal amor é por desordenada paixão ou falecimento dalguma das partes, e não de amizade que por virtude, acordo de razão e bom entender de ambos convém ser confirmado, os quais sem causa direita não dão nem consentem padecer, por assim amar, suspeita, nojo, tristeza ou algum empacho, nem cativamento de cuidado, mas outorgam liberdade.”