O que há de comum entre as palavras “desejo” e “desejar”, “sideral”, “siderar” e “siderado”, “considerar”, “consideração”, “desconsideração” e “reconsideração”, “desiderato”, “siderismo”, “sidérico” e “considerando”?


Cresci a ver em casa de meus pais, e em toda a minha aldeia, aqueles objectos do artesanato de outrora e que vai estando em extinção. Sempre, desde criança, vi cabazes, cestos e cestas de vários tamanhos e configurações, tecidos pelas mãos hábeis de artesãos anónimos. Feitos algures, em oficinas desconhecidas, eram adquiridos a vendedores ambulantes ou, então, comprados nos mercados e feiras da região, novinhos em folha, ainda a cheirar à frescura da madeira. O uso, depois, alterava-lhe o odor e a imagem. Recentemente vim a saber que um cesteiro de Vilar de Nantes, Chaves, acompanha o trabalho com as fases da Lua, particularmente no abate do castanho bravio para a madeira da cestaria.
E a pergunta ficou-me à procura de resposta: que tem a ver o abate de uma planta com uma fase da Lua? E a pergunta alargou-se: que terão a ver as fases da Lua com a sementeira do agricultor, de que por vezes se falava na casa de meus pais e nas ruas da minha aldeia?
Fiquei siderado pela informação vinda de Vilar de Nantes e curioso por saber se o mesmo aconteceria com outros cesteiros, noutras localidades. Conduzido por ventos siderais, a curiosidade passou a consideração, a consideração a desejo e o desejo a desiderato. O resultado foi este texto elaborado sob a inspiração dos astros.
Adolescente ainda, vi a novidade do mar na Figueira da Foz. Aconteceu numa viagem de estudo. O professor de Ciências falou-nos do mar e, obviamente, das marés. Pela primeira vez ouvi falar da influência da Lua na dança compassada do sobe e desce das águas do mar nas areias da praia ou nos rochedos da costa. Nascido e a viver nas montanhas do interior, fiquei, então, ensimesmado, a considerar a sabedoria do agricultor, quando fazia depender das fases da Lua o trabalho da sementeira.
O fenómeno possui uma longa história. Vem de eras antigas, atravessa os fundadores da ciência moderna, Kepler, Galileu e Newton, desenvolve-se à custa de muitas teorias matemáticas, e hoje é inquestionável que as marés, essas alterações verificadas ciclicamente no nível das águas do mar, são efeito da combinação da rotação da Terra com as forças da gravidade exercidas pela Lua sobre o campo gravítico do nosso planeta.
«No creo en brujas, pero que las hay, las hay.» É o que é atribuído aos nossos vizinhos espanhóis. Atrevo-me a parafraseá-los - «Eu não acredito em astros, mas que os há, há.» Podemos não acreditar em horóscopos, mas que dependemos dos astros, dependemos. Até porque nos encontramos presos a um astro, bem insignificante na grandiosidade do espaço sideral. Mesmo assim, somos livres, embora “aprisionados” pelas horas astrais e lei da gravidade.
Não sou astrónomo e, muito menos, astrólogo, mas hoje o assunto é mesmo astral. Falar dos astros e de como eles se cruzam com a vida. A nossa e não só a dos cientistas que nos observatórios de alta tecnologia vivem a entreter-se a olhar para o céu sem fim enquanto as mãos dão visibilidade aos sofisticados cálculos matemáticos que expressam tempos, distâncias, massas e energias da harmonia dançante do Universo.
A crença perde-se na noite do passado. E, nos nossos tempos, há ainda gente que acredita em horóscopos. E muitos média aí estão com páginas astrais para consulta, crendice e satisfação de muitos.
A palavra, como tantas outras, fala grego. Melhor: é mesmo uma palavra grega composta de outros dois termos gregos: “hora” (hora) e skopéo (observar), verbo que se encontra também na base de outras palavras bem conhecidas como “microscópico» ou «telescópio». São duas palavras bem simples que, literalmente, parecem expressar, candidamente, uma ideia igualmente simples: observar a hora. Até parece um convite a olhar para um qualquer relógio. Saber as horas, observando a posição de dois ponteiros de um mostrador. Mas não é disso que se trata, embora o seja também. Só que os ponteiros estão no firmamento dos céus. O horóscopo é observação da hora em que alguém nasceu conjugada com a posição de certos astros nesse momento para inferir traços de personalidade, comportamentos e aspectos da sua vida. Como se houvesse um destino escrito nos astros! Mas a expressão anda por aí. Todos a teremos já ouvido: «Estava escrito nos astros». Assim se vai dizendo como se caminhássemos empurrados por um destino cego. Outros falam na “boa” ou “má estrela” que acompanha cada um. Como o cesteiro acompanha a Lua nas voltas artesanais do seu ofício.
Quem leu as “Confissões” de Santo Agostinho (354-430) saberá que também este santo doutor se sentira muito seduzido pela astrologia e como ela interferiu no processo da sua conversão cristã. Foi com relutância que abandonou o fascínio que sentia por ela. E a «prova evidente, que procurava» contra a astrologia começou a encontrá-la no exemplo que lhe apresentara o amigo Firmino invocando o testemunho de seu pai. Era o caso das duas crianças, nascidas sob a mesma posição dos astros. Uma de família ilustre e outra filha de escrava. Prova consolidada depois com o exemplo dos gémeos: nascidos à mesma hora, no mesmo dia e no mesmo local, seguem vidas diferentes se não mesmo divergentes. Como Jacob e Esaú.
Os psicólogos actuais aproveitam o estudo de gémeos para saberem como o meio ambiente e a hereditariedade se conjugam no desenvolvimento humano procurando discernir o papel de cada um destes factores. No tempo de Santo Agostinho isso ainda não constituía problema, mas era problema, sim, a necessidade de refutar as «enganadoras predições e os ímpios delírios dos astrólogos» e salvaguardar o livre arbítrio do ser humano e a providência divina.
O matemático e físico Johanes Kepler (1571-1630), que formulou as três leis fundamentais da mecânica celeste e considerado um dos pais da chamada “ciência moderna”, ainda ia ganhando a vida a fazer horóscopos para a casa do Imperador. Verdade seja que, ao tempo, ainda não havia clareza na distinção entre astronomia e a astrologia.
Vivemos no planeta Terra, minúsculo ponto que balança, com rotação e translacção, no sistema solar na harmonia matemática do universo sideral. Nela vamos fazendo História contando minutos e horas, dias e noites, anos e séculos, séculos e milénios. Mas, quem verdadeiramente conta o tempo, são os astros que nos envolvem. A contagem humana, seja ela qual for, será sempre um engenhoso artifício elaborado à boleia do movimento dos astros.
Eu não acredito em horóscopos, mas que dependemos dos astros, e muito, dependemos. E a nossa dependência pode explicar também muito da nossa linguagem. Iniciei o texto com uma pergunta jogando um conjunto de palavras da nossa língua, língua de raiz latina (que falta faz o latinzinho nas nossas escolas!). Seja agora dada a resposta duma maneira bem simples. A palavra latina “sidus” significa estrela e constelação. O que há de comum entre aquelas palavras é a raiz latina: “sidus”.
Encontramo-nos no tempo pascal. Tempo festivo que também depende dos astros. Ou, melhor dito, da Lua. Dando sequência à tradição da Páscoa Judaica celebrado no início do equinócio, a Páscoa Cristã celebra-se após a primeira Lua Cheia do equinócio da Primavera. Como é sabido, dela dependem outras festas móveis do calendário litúrgico cristão que, por arrastamento, também elas dependem do ciclo lunar.
Um cesteiro trasmontano, que não conheço, ditou-me estes considerandos. Ou considerações, se se preferir. Creio que um dia vou a Vilar de Nantes. Hei-de lá comprar uma cesta feita à luz da Lua.
Guarda, 12 de Maio de 2022