«Liberdade significa passar o tempo no jardim.» É uma mensagem que nos vem da Coreia do Sul pela escrita do filósofo Byung-Chul Han (n. 1959), para quem o jardim é um «lugar de demora extática» e de «interpretação».

 Sabem-no, certamente, todos os leitores: na narrativa bíblica, tal como no-la conta o primeiro livro da Sagrada Escritura, o ser humano, homem e mulher, foi criado a viver num jardim de delícias. Desde então criar e cultivar um jardim assemelha-se à invenção de um paraíso.Nasci numa aldeia perdida na Beira Alta. Tenho as raízes no campo e no campo fui crescendo. Foi no campo que aprendi a contemplar os movimentos da natureza, a gostar do colorido e formas das flores e a saborear a música da água dos regatos e fontes selvagens, o assobiar dos ventos agrestes, o canto livre dos pássaros, o calor e o frio das estações alternadas, mas também o cantar dos galos na madrugada dos dias, o chocalho dos rebanhos seguindo docilmente o chamamento dos pastores ou o chiar dos carros de bois a transportar o fruto suado do trabalho humano que acrescentava ao jardim da criação o jardim da alegria de quem semeia, planta, ceifa e colhe o fruto da terra trabalhada com o suor do rosto.E eram jardins, também, aquelas tapadas verdejantes do centeio ou coloridas de flores silvestres durante o pousio. Como jardins eram as veigas coloridas das batateiras em flor na Primavera, como se atapetavam do amarelo dos grandes nabais com que se vestiam no Inverno. Parecia que tudo dançava ao som dos cânticos dos pássaros ou do zumbido do vento a marcar o ritmo da dança das searas nos outeiros. Contemplar estes imensos jardins feitos de agricultura e tratados com todo o carinho e cuidado pelos lavradores simples e dedicados e sempre a pensarem no alimento que era preciso levar para casa para alimentar o jardim humano que lhe dão vida, era uma espécie de êxtase místico, uma espécie de visão beatífica, que é o nome que os cristãos dão à eternidade.Depois, como todos, fui conhecendo outros jardins nos caminhos da vida. Uns bem simples e caseiros, outros mais criativa e subtilmente elaborados guardados por estátuas vegetais. Uns alavancados em figuras geométricas, muitas vezes labirínticas; outros, de onde parece que a matemática fugiu, mostram-se selváticos a convidarem à descoberta de misteriosos recantos. Muitas coisas se conjugam no jardim: os clássicos quatro elementos (a terra, a água, o fogo e o ar) e, com eles, os coloridos da vida, os arranjos da natureza e das artes da humana criatividade e os sentidos humanos que aí se activam em sinfónica harmonia: de luz e sombras, de cores, de formas e odores e ainda de sons admiravelmente dirigidos pela mestria dos ventos, do chilrear das aves ou do zumbido das abelhas. Ali a matemática faz-se beleza. Beleza dos números, das linhas e das formas matemáticas. Da matemática pura, diremos platonicamente, de que se serviu o Criador Divino, e das matemáticas aplicadas desenhadas pelos humanos criadores. Talvez seja por isso que a beleza de um jardim é tão divinamente transparente que nela se deixa imaginar a beleza do paraíso adâmico e se mostra a Beleza Eterna. A história fala-nos de jardins que ficaram célebres. Muitos encontram-se ainda bem vivos e continuam a encantar. Eles vão-se diversificando conforme as mentalidades, as culturas, os momentos da história humana. Encontramos jardins de tanta variedade que até parece haver tantas espécies de jardins quantas forem as maneiras de encarar o mundo. Já muitos o fizeram notar: o jardim é um factor que pode distinguir a nossa cultura das culturas orientais. E a internet abre-nos a porta à generalidade dos jardins do mundo, designadamente do Oriente Extremo, cuja cultura tão bem sabe associar a filosofia e a espiritualidade com o jardim. Ali, segundo uma tradição culta antiga, um letrado tanto se ocupa das letras como cria e trata um jardim. Criar e tratar um jardim é uma filosofia inteira e um jardim, se é um prazer para os sentidos, é também alimento e tranquilidade para o espírito. Na nossa cultura não chegaremos a esse esmero do Oriente, mas o arquitecto Raul Lino (1879-1974), bem associado à arquitectura na Guarda, não deixa de assim se referir ao sentido que atribuímos à palavra “jardim”: «retiro da alma, enlevo do espírito, refúgio da fantasia, Livro de Horas iluminado por onde se rezam os mistérios da natureza.»Curiosamente, no perturbante livro de Ziya Tong (n.1980) intitulado “Tudo o que não vemos” fui encontrar uma curiosa informação sobre o botânico Lineu (1707-1778). Em 1759 este célebre taxonomista teve uma ideia original de medir o tempo. Tendo constatado que certas plantas especiais floriam a determinadas horas do dia, concluiu que bastaria olhar para um jardim e ver as espécies que estavam a florescer num determinado momento para ficarmos a saber as horas que eram. E chegou mesmo a desenhar o projecto de um “horologium florae”, ou seja, um relógio de flores dessas plantas especiais, a que chamou aequinoctales.O relógio de flores de Lineu nunca poderia vingar, acrescenta Ziya Tong, porque, «na maioria das plantas que ele observou, o momento de abrirem ou fecharem não dependia de uma hora especial do dia, mas da quantidade de luz que recebiam. As flores são relógios locais. Durante o longo sol de verão, as flores na latitude de Uppsala, na Suécia, a norte, não abririam ao mesmo tempo que as de Brooklyn, em Nova Iorque.» O “horologium florae” de Lineu não vingou nem poderia vingar, mas os antigos agricultores bem conheciam as horas pelo modo como a vida da terra se manifestava ao longo dos dias, das semanas, dos meses e dos anos. Valerá a pena lembrar que a palavra grega para dizer “paraíso” ou “jardim” é “tapadeisos”, que sempre me evoca a palavra portuguesa “tapada”, como logo me aconteceu quando aprendi algum grego. Não sei se a portuguesa “tapada” terá origem naquele termo grego, mas ficar-lhe-ia muito bem, particularmente nestes tempos primaveris em que as tapadas da Beira se enchem de flores campestres. Poeticamente R. Tagore (1861-1941) escreve que «as flores vão a uma escola que fica debaixo do chão» e «lá, com as portas fechadas, estudam as suas lições» … até que, «quando as nuvens chegam, elas têm a suas férias». Então «saem maravilhosamente vestidas de cor-de-rosa e amarelo e branco» em direcção à sua casa, o céu, lá onde estão as estrelas e onde as aguarda a sua mãe, porque «também as flores têm mães!»«Liberdade significa passar algum tempo no jardim.» É Primavera. Vamos então ao jardim em busca de liberdade. A um qualquer jardim. Bastará até uma minúscula flor de uma pequena planta que desabrochou num qualquer recanto e que ali se encontra abandonada à espera de alguém que a contemple. Passar algum tempo a olhá-la em êxtase místico, como o êxtase de Adão e Eva no jardim das delícias antes da queda fatal, bem pode ser a conquista de um pouco de liberdade interior e de paz de espírito. Porque, «as flores vão a uma escola que fica debaixo do chão» e numa simples flor esconde-se o mistério da criação.Não precisamos de um qualquer relógio da engenharia humana. Basta o “horologium florae” com que se explica o tempo em que se «rezam os mistérios da natureza.»Guarda, 5 de Março de 2021