“Os poetas (artistas) são homens de mente divina” (Cícero)


Vale a pena ler o relato do encontro do Papa Francisco com os artistas, no dia 23 /06/2023, na Capela Sistina, por quem lá esteve, sentado ao lado da Joana Vasconcelos, fotografando Pedro Abrunhosa...
Quando eu, esta manhã, às 7h30, caminhava pelos corredores do Vaticano perguntando pela Capela Sistina, dirigi-me a um homem de cabelos e olhos ardentes. “Você também está a caminho da audiência com o Papa?” “Sim.” “Prazer em conhecê-lo, David.” “Prazer em conhecê-lo, Paolo.” “Você também é artista?” “Sim, sou escritor. Sou de Milão.” “Ah, bom, qual é o seu nome então?” “Cognetti.” Começou bem. A primeira pessoa que interpelei era nada menos que o autor de “As Oito Montanhas”, um dos mais belos romances dos dez últimos anos. Um minuto depois, cruzei-me com Paolo Giordano, o homem que me emocionou profundamente e por vários dias com “A Solidão dos Números Primos”.
Há quatro semanas, recebi um e-mail com o título ‘Pope meets Artists’ (“O Papa encontra-se com Artistas”). Como muitos, pensei que fosse uma piada. Quando ficou claro que não era o caso, não sabia, até esta manhã, quais os outros artistas que estariam presentes. Paolo e eu fizemo-nos fotografar na entrada da Capela Sistina.
O violoncelista japonês Issei Watanabe trouxe um tipo de violoncelo punk, feito de restos de madeira compensada, tábuas azuis e botões coloridos. Ele sentou-se à frente. A sala ficou em silêncio. Com os olhos fechados, tocou de forma muito subtil e leve duas danças das inesgotáveis suites de violoncelo de Bach e foi arrebatador. A escultora monumental portuguesa Joana Vasconcelos, que estava ao meu lado, teve que enxugar os olhos por um momento e eu compreendi-a perfeitamente.
O Papa entrou na capela numa cadeira de rodas, vindo de trás. Ele tinha acabado de sair do hospital e, apesar do conselho de seus médicos para ter muito cuidado, estava entusiasmadíssimo. Ele riu, acenou e subiu ao púlpito. ‘Irmãos e irmãs’, começou ele a ler o texto escrito por si, obrigado por terem aceitado o meu convite; estou feliz por estar aqui convosco.’ Ele citou Romano Guardini, que em tempos descreveu o artista como uma criança e um visionário. Ele remeteu para Hannah Arendt, que considerava inerente ao ser humano trazer ‘novidade’ ao mundo. Ele mencionou um autor latino-americano que dizia que temos dois olhos: um de carne para ver o que está presente e um de vidro para podermos ver os nossos sonhos. Ele falou sobre a beleza de maneira desinibida, não como ‘a beleza artificial e superficial que é tão popular hoje em dia e, muitas vezes, está ligada a mecanismos económicos que geram desigualdade’, mas como ‘uma consciência crítica em relação à sociedade e que desmascara inverdades’. Com a sua voz suave e relativamente elevada, interrompeu ocasionalmente a leitura do seu texto para improvisar, esclarecer, refletir em tempo real. Ele deu mostras do seu sentido de humor ao qualificar a ironia de ‘uma virtude brilhante’ que frequentemente era usada na Bíblia para ‘desmascarar a pretensão de autossuficiência, desonestidade, injustiça e crueldade, que muitas vezes se escondem no poder e até mesmo no sagrado.’ Parecia que ele não se estava a referir apenas ao passado.
Pouco a pouco, chegou ao cerne da sua exposição: ‘Como visionários, como homens e mulheres de consciência crítica e discernimento, considero-vos aliados em muitas questões que me são muito caras, como a defesa da vida humana, a justiça social, a preocupação com os pobres, o cuidado com a nossa casa comum, a fraternidade humana universal. L’umanità dell’umanità é-me preciosa.’ E acrescentou: ‘Não somos apenas luz, e vocês lembram-nos disso. Ao mesmo tempo, há uma grande necessidade em deixar que a luz da esperança brilhe na escuridão, no meio da nossa indiferença e do nosso egoísmo. Ajudai-nos a ter um vislumbre dessa luz, dessa beleza que salva.’
Como escritor que, nos últimos dez anos, tem lutado por encontrar um equilíbrio entre o ímpeto criativo literário e a responsabilidade social, entre o que eu gosto de fazer e o que me preocupa, achei aquelas palavras comoventes e reconfortantes. Aqui estava um homem com um brilho nos olhos, com um espanto infantil, com uma grande força interior e o desejo de fazer melhor.