O meu Relógio de Sol

Foi há umas boas dezenas de anos, naquele tempo em que uma professora da escola primária lidava na sala com mais de quarenta alunos divididos por quatro classes. Hoje parece mentira ou um milagre. Mas a memória das crianças é fabulosa e o nosso psiquismo, fabuloso também como é, ao olhar o presente chama pelo passado. A minha professora primária havia chamado à lição os escolares da 4.ª classe. Os outros, sentados em carteiras de quatro lugares, ocupavam-se, se é que se ocupavam, com outras actividades. A minha classe, uma 3.ª composta por mais de uma dezena de pequenotes, preenchia o tempo com a cópia de um texto relativamente pequeno. Ali se falava da esperteza, do comportamento e alimentação da raposa. Coisas que bem sabíamos todos nós, não vivêssemos numa aldeia perdida na Beira Alta onde, de vez em quando, uma raposa visitava o povoado à caça de uma galinha mais distraída. Fosse como fosse, quando terminámos a tarefa ainda o grupo da 4.ª classe se encontrava em volta da secretária e nós, aproveitando o tempo, fomos naturalmente cochichando uns com os outros. Já com fome, para o que terão também contribuído os manjares da raposa, ansiávamos pelo habitual intervalo. Relógios? Sabíamos lá o que isso era! Se ali nos encontrávamos era porque havíamos sido chamados pelo sino da pequena torre da capela de S. Miguel que alguém se encarregava de tocar à chegada da professora. Baseado na experiência de outros dias, levantei-me, estiquei-me bem a olhar por uma das grandes janelas da sala. Os três colegas de carteira fizeram o mesmo. Era um gesto relativamente habitual entre nós e sempre sem percalços. Até que, naquele dia, fomos apanhados em flagrante, os quatro daquela carteira, a olhar pela janela, como que a perguntar ao Sol pelas horas do almoço. Quando esperávamos uma repreensão pela nossa pequena turbulência, fomos surpreendidos com a pergunta:- O que se passa lá fora?Se estávamos de pé, em pé ficámos por um breve momento de silêncio. Instado pelo colega do lado que não se cansava de me dar cotoveladas, fui eu a responder: - Estávamos a ver as horas pela sombra do telhado na parede para sabermos se ainda falta muito para o intervalo.- E ainda falta muito? – perguntou a professora.Tive vontade de dizer que já não faltava nada, mas não me atrevi. De facto, a sombra ainda não havia atingido o ponto habitual, mas sempre fui dizendo:- Ainda falta um pouquinho, mas já fizemos todos a cópia.- Está bem. – E mandou sentar o grupo da 4.ª classe, sem mais nada dizer.Aquele “está bem” deixou-nos indecisos. O colega do lado acordou de novo o cotovelo e, muito baixinho, insistia comigo para que eu perguntasse se já podíamos sair. Receoso e timidamente, lá avancei com a pergunta:- Então já podemos ir ao almoço?Foi assim que, naquele dia, a escola foi mais breve, graças à sombra do telhado do balcão da casa de meus pais que se avistava daquela janela, bem nítida e marcante nos dias de céu limpo. Ainda hoje lá se encontra escancarada, aquela janela, mas a escola sujeita a todas as intempéries, já não recebe meninos para lerem o tempo através dela.Foi assim que um dia do passado longínquo foi chamado pelo presente. Lembrei-me deste “relógio de sombra” de miúdos a ansiar por um intervalo, quando soube, há bem pouco tempo, que o dia mais longo do ano, que marca o início do Verão no Hemisfério Norte, o dia 21 de Junho, era o “Dia do Relógio de Sol”, criado pelo Instituto de Investigação, Estudo e Divulgação do Quadrante Solar em 1990 com a pretensão de alertar para a necessidade salvaguardar o vasto «património cultural gnomónico» espalhado pelo país e «promover o relógio de sol como instrumento histórico, científico, cultural, decorativo, lúdico e didáctico.» Desconhecia a existência desta instituição e atrevo-me a imaginar que o mesmo acontecerá com muita gente. Procedi a uma pesquisa com os recursos disponíveis. Não, não se trata de um organismo do Estado. É uma instituição privada e sem fins lucrativos que, para além de pretender inventariar, estudar e divulgar o «património cultural gnomónico», também visa dar apoio à execução de projectos de relógios de sol. Desconheço o dinamismo que aquele instituto imprime à sua actividade, mas não deixarei de me alegrar com os seus objectivos. Onde se situa e em que estado se encontra o nosso relógio de sol? Da nossa quinta, da nossa aldeia, do nosso bairro, da nossa cidade? Penso naquele que existe bem no centro, centrinho, da cidade da Guarda, bem junto à catedral, por onde passa todos os dias muita gente. Mas quem sabe que se encontra ali, desprezado como está e entregue á sua pobreza? Sempre darei uma pista para os mais distraídos. Fica ma Rua dos Clérigos.Naquele tempo não sabia o que era um relógio de sol, esse primitivo artefacto que o ser humano criou para ler o tempo. Também não sabia que a palavra “relógio” significa, em sentido etimológico, “leitura” ou “conhecimento da hora” e que a “hora” possuindo, para os nossos antepassados, uma grande amplitude, significava uma qualquer divisão do tempo, um qualquer momento, hora, dia ou estação. Como era ainda no tempo da minha escola primária. A “hora” era o tempo que durava uma qualquer actividade. Como uma cópia escolar. Não é assim no tempo presente. Hoje marcamos o tempo com tal rigor e somos por ele de tal maneira marcados que já não sabemos viver sem um relógio digital no bolso, empurrados como andamos pelos afazeres, reais ou imaginários, impostos pela vida hodierna. Aquele balcão da casa dos meus pais, em que se projectava a sombra do telhado que o cobria, não tinha sido construído para medir o tempo, mas é bem verdade que ele foi o meu primeiro relógio, de sol ou de sombra, pelo qual eu, como outros miúdos, lia o tempo e esperava pela hora do almoço. Sempre o Sol foi um relógio; o relógio do nosso lugar no Universo. Porque ele é um relógio, é que os seres humanos aprenderam a ler as sombras e se aventuraram a criar engenhocas de medida do tempo, inclusive os relógios de sol.- Então já podemos ir ao almoço? – perguntava eu naquele dia, no final daquela manhã escolar.- Agora já posso ir ao banco? (Now I can go the bank?) – Exibindo um sorriso do tamanho de um comboio, foi assim, com esta pergunta, que António Costa se dirigiu à presidente da Comissão Europeia, Sr.ª Ursula von Ley, quando esta lhe entregou um cheque de vários milhares de milhões de euros.Aquele “Now” parece ter desfeito a eternidade de uma espera de um governante de olhos pespegados no centro da Europa como crianças a olhar para a sombra do Sol enquanto contam as horas que faltam para o almoço. Mas, sabendo que a cada hora as nuvens podem toldar o céu, importará sempre perguntar:- Onde se encontra o nosso Relógio de Sol? Qual é o Sol do nosso relógio?