Olhos nos olhos


A reunião da Comissão, destinada a elaborar o primeiro Contrato Colectivo de Trabalho das Letras do Alfabeto, estava marcada para as dez horas daquela manhã de Inverno, mas, todos os participantes tinham a noção clara de que, aquelas reuniões, nunca começam na hora exacta. Esta era, porém, a primeira reunião sobre o tema e, daí, que fosse grande a expectativa.
As primeiras a chegar foram as cinco vogais, num veículo conduzido pela letra A, tendo a seu lado a letra I. No banco de trás vinham as outras três.
As consoantes foram aparecendo a pouco e pouco e sem ser por ordem. As letras B, C, D, G, J, L e M, afectas ao Sindicato Democrático das Consoantes, chegaram ao mesmo tempo, com o respectivo Delegado Sindical. As outras, unidas em torno do denominado Sindicato Unitário das Consoantes, foram chegando duas a duas, quase todas de táxi.
Depois de feita a chamada, verificou-se um pequeno incidente. Os sinais de pontuação, que não haviam sido convocados, começaram a fazer grande alarido, dizendo que também queriam entrar, pois que, sem eles, as letras não eram capazes de cumprir o seu papel. Foi chamada a Polícia, mas acabou por prevalecer o bom senso. A mesa admitiu que os sinais pudessem assistir, com o estatuto de observadores. Após alguns protestos, os sinais lá se aquietaram, dizendo que assistiam, mas sob protesto.
Ao fazer-se a chamada das consoantes, ouviram-se assobios quando o presidente da mesa chamou as letras K, W, e Y. O Presidente pediu silêncio e fez questão de sublinhar que, a despeito da sua origem estrangeira, tais letras faziam hoje parte integrante do alfabeto, pelo que não admitia discriminações, não querendo acreditar que se estivesse em face dum caso de racismo.
Foi depois levantada a questão da classificação das letras, em termos de importância comparativa.
O Delegado das Vogais fez questão de sublinhar que era patente o maior valor das vogais visto que, sem elas, como todos teriam de reconhecer, seria impossível formar palavras.
As consoantes, antes até que o seu Delegado tomasse a palavra, levantaram-se e começaram a assobiar, em sinal de protesto. A letra Z, excitadíssima, começou a gritar dizendo: “É um autêntico desaforo”. A letra O começou, também ela fora de si, a verberar o comportamento da letra Z dizendo: “Eu, de si, não esperava outra coisa“. Você é a última letra do alfabeto, quase não tem utilidade, sendo mais utilizada nos sinais de trânsito, para indicar curvas perigosas. Além disso, nada disto me admira, pois você não tem uma postura vertical”. A letra Z, afirmou: “ É melhor ficarmos por aqui, antes que lhe falte ao respeito. A senhora - continuou voltando-se para a letra O - devia estar calada. Você não passa duma letra redonda, que não tem ponta por onde se lhe pegue. Se fosse número, você era um zero, já reparou?”
A Letra F, saiu a terreiro, afirmando que, ela sim, valia por duas, pois que, antigamente, o som F, era escrito por duas letras, o P e o H. E que, disso mesmo ainda havia vestígios, sendo certo que algumas farmácias, mais antigas, ainda tinham escrita na fachada a palavra “Pharmácia“. Por outro lado - continuou a F - há por aí consoantes que, ao contrário de mim, não valem nada sozinhas. É o caso do H. Quando está no princípio das palavras, não se lê, exemplificando com as palavras “honra“ e “heroísmo“. E, nos casos em que tem alguma utilidade, precisa de se encostar ao N ou ao L, para dizer “NHE“ ou “LHE“.
A letra H estava lívida e preparava-se para falar de cabeça perdida.
A letra Z, sem que lhe tivesse sido dada a palavra, apoderou-se do microfone e gritou “Silêncio“, “Respeito“.
Surpreendidas pelo tom autoritário da Z, as restantes calaram-se. A letra Z, acrescentou: “Eu sou, de facto, a última letra do alfabeto, mas a ordem dos factores - como sabem da matemática - é arbitrária. Mas não deixa de ser sintomático que, precisam de mim para escrever a palavra paz, que é importantíssima. E, já agora, chamo a atenção das colegas, consoantes e vogais, para o seguinte: Estamos a perder tempo com o acessório, sem darmos conta do essencial”. O silêncio era profundo.
“Sim, caras colegas, - prosseguiu a letra Z - paira sobre todas nós uma grande ameaça. Nenhuma de nós é insubstituível. Reparem no que aconteceu aos hieróglifos. E a Escrita Cuneiforme? Desapareceram. E, em relação a nós, pode acontecer o mesmo. Reparem. Primeiro foi o Braile, que, com pontinhos em relevo, permitiu que os invisuais nos lessem, sem lá estarmos. A Informática, um destes dias, pode pregar-nos uma partida, substituindo-nos por algo mais fácil. Portanto, ressalvando a categoria das maiúsculas - que pela própria natureza das coisas deve ser superior - devemos unir-nos, em lugar de nos dividirmos com disparates.” Seguiu-se um penoso silêncio. Depois, devagarinho, começou um murmúrio, que, pouco a pouco, encheu a sala. “As letras, unidas, jamais serão vencidas. As letras, unidas, jamais serão vencidas.”