Ter nascido ao lado da fronteira abriu-me cedo os horizontes para o mundo.

O que poderia ter sido um estigma que me confinaria no Vale de Rosas (como lhe costumava chamar o meu amigo Jesué Pinharanda Gomes), talvez murcho, talvez florido, ou no Vale de Espinho(s), onde me esperaria um rosário de provações e de doçuras que me levariam a horizontes bem diferentes daqueles percorri.
A fronteira era para mim um lugar mítico. Os meus olhos tinham vontade de ficar ali, a deambular do alto da Ladeira por Portugal e pela Espanha fora. Saía da aldeia e, a alguns quilómetros depois, já estava no estrangeiro, na realidade e em pensamento. Assim, via que o mundo era maior do que diziam os livros de geografia que aprendia na escola. Tinha certamente de ler muitos mais para descobrir aquilo que os meus pais me iam contando. E quem sabe se neles encontraria alguma coisa do que me diziam.
Nunca o meu pai teria a ideia de se meter a caminho do Sabugal para fazer compras. A variedade e a qualidade dos produtos eram melhores na Espanha. Além disso, ir a Espanha era como ir de férias. As compras eram um pretexto para sair fora da aldeia, da alfaiataria, da família, ir tomar outros ares. Claro que tinha sempre de se comprar alguma coisa, nem que fossem uns churros, um pouco de turrón de Alicante, cortado à machadada, ou um trigo espanhol, para migar no café, ao pequeno-almoço.
Comprar qualquer coisa noutra língua, noutro ambiente, noutro país, com outra moeda, era comprar qualquer coisa mais e esse mais era pago com moeda espanhola — os duros e as pesetas.
Ir à Espanha era ir ao estrangeiro, falar estrangeiro e comportar-se como estrangeiro. Estávamos lá quase sempre. Íamos no começo da Primavera, pelo S. Brás, ver o povo nas ruas, admirar as corridas de cavalos, montados por homens, mulheres, rapazes e crianças.
No Verão, voltava-se de novo às festas e touradas de Valverde que duravam vários dias. Passávamos pela taberna do Ti Tomás e o meu pai pedia sempre uns callos ou umas doses de gambas das rias de Vigo, acompanhadas com cerveja San Miguel.
Pelo Natal, voltávamos lá para apanhar a azeitona, em Pesqueiro, nos terrenos da Fieitera e da Florida e fazer o azeite na prensa. Minha mãe comprava-me migradas, melocotones e albaricoques em conserva, que depois encontraria no dia de Natal, no sapatinho, ao canto da chaminé.
Na Espanha, comprava-se o supérfluo — os véus, o pó-de-arroz, o tokalón, o cerogomil, o Floïd, os rebuçados de nata, as galletas, as alpargatas, mas também o azeite e o trigo espanhol branquinho e de côdea estaladiça que contrastava com o centeio negro da aldeia.
Com os nossos passos a atravessar constantemente a raia, estávamos já, sem o saber, a caminhar para uma Europa sem fronteiras pela qual, inconscientemente, sempre ansiámos. Os contrabandistas deixariam de existir para dar lugar a homens livres e cidadãos desejosos de efectuarem trocas comerciais baseadas na igualdade, sem terem necessidade de calcorrear montanhas e vales ou atravessar ribeiras a vau. A nossa prática quotidiana era já o prenúncio da abertura à liberdade de circular entre povos irmanados no mesmo desejo de construir um quotidiano sem rancores e sem medo da constante vigilância dos guardas fiscais e carabineiros. E as montanhas que nos separam de Espanha deixariam de ser marcos fronteiriços, mas tornar-se-iam um pano de fundo que nos lembraria que a alguns quilómetros atrás delas encontravam-se nuestros queridos hermanos.