Não há por certo em Portugal família que, mais chegada ou mais afastada, não tenha uma Maria da Conceição.

É – ou foi durante gerações – um dos nomes mais escolhidos para batizar uma filha, apadrinhar uma menina ou, também, nas famílias com mais pergaminhos, enfileirar, assim a modos de bênção, com os outros nomes herdados de mãe, avós, tias ou quejandas. Assim foi com uma prima minha, há muito desaparecida, mas que eu ainda conheci velhinha, que saiu da pia batismal portadora da prolífica identificação de Lucila Berta Aquilina Maria da Conceição seguida dos mais três apelidos da família, num verdadeiro colar de “pérolas” certificador de nobres princípios (!?).
Ora o Maria-da-Conceição é uma forma de expressão, convertida em patronímico, da devoção à Virgem Maria, na sua invocação de “imaculada” na sua “conceção”, ou seja, nascida sem a sombra do pecado original. O que é que isto quer dizer em termos mais simples? Começando pelo princípio: tendo o Homem e a Mulher sido expulsos do Paraíso em virtude da sua rebelião relativamente a Deus seu Criador, por cobiça do Seu Conhecimento e do Seu Poder, foram marcados para todo o sempre, eles e sua descendência, até ao fim dos tempos, pelo que se denomina o “Pecado Original”, de que todos somos portadores logo à nascença. É nesta conformidade que, para mãe do Filho que pretende mandar ao mundo dos Homens para os salvar, Deus tenha de abrir a exceção que permita que Maria seja concebida sem pecado, para, impoluta e cheia do Seu Espírito, seja o seio digno de acolher Cristo Salvador. Daí a Anunciação do Anjo : “Ave, ó cheia de Graça, o Senhor é Contigo” (Lucas 1,28). Talvez que, pela mesma dinâmica de filiação mariana, venha daqui, também, o nome de Maria da Graça.
E isto porque é uma constante esta expressão da devoção a Maria, Mãe de Deus, e figura maior junto ao poder divino enquanto protetora e intermediária dos humanos junto do Pai. Uma presença e uma inspiração toda feminina e maternal que, de certa maneira, é um complemento todo poderoso do Pai, e do Filho, sendo que o Espírito Santo a todos envolve.
Desde os primórdios do Cristianismo que, tanto no Ocidente como no Oriente, se celebrou a “imaculada conceição” de Maria. Já no século VII se celebrava, a 8 de dezembro ou nove meses antes da festa da Natividade (8 de setembro), a respetiva festa litúrgica. O Papa Sisto IV, em 1477, inscreve-a definitivamente a 8 de dezembro, no calendário litúrgico.
Nesta linha da absoluta pureza de vida e sentimentos da Mãe de Cristo, são abundantes as afirmações dos Padres e Doutores da Igreja, que, com maior ou menor cópia de argumentos, seguem na esteira da afirmação de S. Tomás de Aquino que pelo ano de 1273 escrevia: Ipsa enim purissima fuit et quantumad culpam, quia ipsa virgo nes originale, nec mortal enes veniale peccatum incurrit. [Ela é, pois puríssima também quanto à culpa, pois nunca incorreu em nenhum pecado, nem original, nem mortal ou venial]. A Imaculada Conceição da Virgem Maria foi solenemente definida como dogma pelo Papa Pio IX a 8 de dezembro de 1854, o que quer dizer que é à luz da fé que se aceita esta premissa se bem que ela assente no argumento da coerência que a “divindade” do filho que concebera impunha.
Aqui chegados, já cabe perguntar: E em Portugal? Em Portugal a devoção a Nossa Senhora da Conceição é bastante antiga e interligada com a nossa História sempre que se tratou de momentos cruciais para a identidade e independência nacionais. Assim, logo em 1147, após a conquista de Lisboa, D. Afonso Henriques manda celebrar Missa pontifical de ação de graças em sua honra. Após a vitória em Aljubarrota, em 1385, o Condestável do Reino, D. Nuno Álvares Pereira (hoje São Nuno de Santa Maria) mandou construir a Igreja de Nossa Senhora do Castelo em Vila Viçosa, consagrando-a a Nossa Senhora da Conceição. Para o efeito, ele encomendou em Inglaterra uma imagem de Nossa Senhora da Conceição que ainda hoje lá é venerada. Em 1646, D. João IV, da Casa de Bragança e descendente de D. Nuno Álvares Pereira, em plena Guerra da Restauração da Independência, jurou e proclamou solenemente que Nossa Senhora da Conceição seria a Rainha e Padroeira de Portugal e de todos os territórios ultramarinos. Coroou a imagem de Nossa Senhora em Vila Viçosa e foi assim que, a partir daí, em sinal de reconhecimento de que a Virgem Maria é a verdadeira Rainha e Padroeira de Portugal, todos os reis que se seguiram nunca mais colocaram a coroa real na cabeça, sendo que, em ocasiões solenes, a coroa era apenas posta sobre uma almofada, à direita do rei ou rainha. Não deixa, por isso, de ser simultaneamente curioso e encorajante, o facto de festejarmos, com a proximidade de uma semana, a Restauração da Independência de Portugal e a Imaculada Conceição de Maria. E não podemos esquecer também que, na visita apostólica que nos fez em 1982, o Papa João Paulo II, dando passo à sua profunda devoção mariana, visitou, numa tarde de Maio, mês de Maria, este Santuário de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa.
É este o “histórico” duma das devoções mais antigas e mais populares à Virgem e que, até muito recentemente foi assimilada à celebração da “Mãe”, consagrando-lhe o dia e a encomendação. E devo dizer que para mim fazia todo o sentido porque o atributo que mais glorificou a Virgem foi precisamente a maternidade. E não podemos negar que, nos dias que atravessamos, no mundo convulso que nos rodeia e nos assola, é este espírito maternal de feição divina que nos socorre e nos consola, invoque-se quem se invoque, seja qual for a crença, a religião ou a simples evocação de forças benevolentes. É a mãe que todos temos ou tivemos a que aspiramos num conchego pacificador, feito de presença ou de espírito, de gesto ou de conselho, de repouso ou de sonho, de conversa ou de oração. Respigados de uma poesia do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, intitulada Para Sempre, deixo-vos com os versos que o dizem tão bem:
[…] Mãe não tem limite/é tempo sem hora/luz que não apaga/ quando sopra o vento/ e a chuva desaba,/ veludo escondido/ na pele enrugada,/ água pura, ar puro,/puro pensamento.[…] Mãe, na sua graça,/é eternidade. […] Fosse eu Rei do Mundo/baixava uma lei:/
Mãe não morre nunca,/ mãe ficará sempre/junto de seu filho/ e ele, velho embora,/ será pequenino/feito grão de milho.
Lisboa, 01-12-2022