Moda florida e arte da vida


Não aprecio muito percorrer as ruas de uma grande cidade a espreitar os manequins vestidos com a roupa do último grito… da moda. Mas, como a Adelaide gosta, vou-a acompanhando, sem queixume e até com muita alegria, como manda a ética de bom marido. E fico feliz ao vê-la assim feliz, no olhar e nas observações que vai fazendo com as quais vou estando geralmente de acordo.
Não deixando de apreciar o arrumo das montras que, muitas vezes, expressam bem a sensibilidade artística de quem idealizou aqueles espaços de atracção e desejo, vou desta maneira conhecendo o que está e não está na moda: as cores, os padrões dos tecidos, os cortes e outros adereços modais. Foi assim que descobri que, no corrente ano, as montras se transformaram em pequenos jardins com flores de todos os tipos e tamanhos estampadas nos vestidos, saias e blusas do vestuário feminino. Ou dos cavalheiros, nas camisas, calções e outras peças. Uma moda bem florida, portanto!
Ali se cruza a sensibilidade estética com a economia, a vaidade e a luxúria humanas. Mas também ali se cruzam as grandes misérias deste mundo. Quantas vezes, pela entrada da noite, ali, na reentrância de uma porta de loja comercial, se estendem, embrulhados em caixotes ou velhos cobertores, aqueles para os quais não há outro abrigo senão a rua. Riquezas e misérias dos caminhos e descaminhos da vida humana!
Marko Ivan Rupnik, num livro tão pequeno fisicamente como grande na dimensão espiritual, intitulado precisamente “A Arte da Vida: o quotidiano na beleza”, conta que um especialista do mundo da moda lhe terá expressado a opinião segundo a qual as novas gerações se iam perdendo devido essencialmente a três factores: moda do vestir, moda das diversões e moda de como passar as férias. Mais, segundo este especialista do mundo da moda, «nestes três âmbitos se delapidou o património espiritual da Europa». sustentando que quem gere o imaginário nestes três campos domina por completo as gerações, e que «os outros discursos, incluindo os religiosos, são totalmente supérfluos e só têm sentido para quem os faz, precisamente para dar a sensação de que não se está de mãos cruzadas.» Ouça quem quiser e entenda quem puder a voz de quem trabalha no mundo da moda.
Moda do vestir-se, moda do divertir-se e moda no modo de passar as férias… Modas que bem podem ser vistas como síntese da vida vivida nestes meses estivais em que nos encontramos. São meses de férias, meses de festivais e diversões, meses em que o nosso eu parece crescer à medida da sedução do marketing com que nos vamos deixando enganar, numa espécie de tentativa inconsciente de recuperarmos um pouco a inocência perdida. Marko Ivan Rupnik escreve no mesmo livro: «… se a habitação é uma espécie de extensão do vestuário, e o vestuário é uma extensão do corpo, no momento em que o corpo é o epicentro do Eu, o lugar em que o Eu vive toda a consciência de si, é claro que a comunicação daquilo que compreendo como minha identidade ocorre sobretudo por meio do corpo e das roupas. Aqui está a razão da moda, mas também de todos os tratamentos de beleza, até chegar à cirurgia estética: é por meio destas coisas que eu posso gerir o que desejo que os outros percebam de mim, a impressão que quero transmitir da minha identidade, a informação sobre a minha pessoa que quero passar para os outros.»
Quem é este Marko Ivan Rupnik que assim escreve? Quem inventa um título como aquele, «A Arte da Vida» com o subtítulo «O quotidiano na beleza», só pode ser um artista. É artista, teólogo e escritor. Mas não é um artista qualquer.
Com obras espalhadas por vários países, Rupnik é um sacerdote jesuíta nascido em Zadlog em 1954, na Eslovénia. Dirige em Roma um Centro de Estudos e Investigações para o estudo das relações culturais e religiosas entre o Ocidente e o Oriente na Europa e é director do Atelier de Arte do Centro Aletti, dedicado à arte litúrgica.
No Prefácio à Edição Portuguesa da obra acima referida, Rupnik escreve: «Não escondo a alegria pela tradução deste livro em português. Já há muitos anos que a amizade me une a muitos portugueses, mas sobretudo o mosaico da basílica da Santíssima Trindade em Fátima faz-me sentir uma espécie de parente vosso, ó portugueses.» Não, não é um artista qualquer aquele que concebeu tal painel de ouro e luz. Ele é um «parente» nosso!
Comecei a crónica a visitar as montras das ruas em que manequins se exibem com vestuário do último grito da moda. Estética do quotidiano, mas do quotidiano do efémero porque transitório. É a moda a viver, quantas vezes, paredes meias com quem mal tem um cobertor para se cobrir durante a noite. Termino o texto com a contemplação do grandioso mosaico dourado da basílica da Santíssima Trindade, em Fátima, uma criação de Marko Ivan Rupnik e executado por um grupo de artistas de vários países.
Além, nas ruas das cidades e centros comerciais, entroniza-se a beleza do efémero, aqui, refulge a beleza do eterno. Além pode encantar a novidade da moda, aqui é o Evangelho de Sempre que salva. Além, a multiplicidade das cores a vestirem as vaidades humanas, aqui, o branco e o dourado a potenciarem em luz a santidade de um Mistério infinito. Além, a beleza das coisas exprime a riqueza de quem as pode comprar e com elas se enfeitar e exibir, aqui, a beleza do sensível dourado expressa a Beleza de Deus e dos seus Santos.
Se desse fundo dourado e branco emerge o rosto de Cristo crucificado que parece desprender-se, em glória, da cruz que O sustenta, bem podemos exclamar como o profeta Isaías (53,2) «Não tinha presença nem beleza para atrair nossos olhares, nem aspecto que nos cativasse», mas também ali nos podemos deslumbrar com a beleza de Cristo e cantar com o salmista (44 [45], 3): «Sois o mais belo dos filhos dos homens; a graça se derrama em vossos lábios.»
Porque ali… Ali, sobressaindo daquele painel de luz dourada de 500 metros quadrados, o Amor crucificado é a Beleza que salva. Ali, a sedução estética é êxtase e pura contemplação mística. Ali, é entrar, ver, estar, saborear, contemplar. Ali, bem podemos dizer que a arte verdadeira termina sempre em oração. Por isso, é entrar ali e, rezando, deixarmo-nos submergir na Luz que irradia do mosaico. Ela introduz-nos na Beleza Eterna, húmus do jardim da vida.
Guarda, 11 de Julho de 2019,
Dia de São Bento, Padroeiro da Europa