São milhares as representações do gesto caritativo que tornou famoso um dos mais populares santos da Europa.

Só nas mais de 3700 igrejas francesas dedicadas a São Martinho de Tours podemos admirar algumas das mais belas peças de arte representando o momento da partilha da sua capa com o pobre às portas da cidade de Amiens. A iconografia não se cansaria de celebrar este episódio que comovia a piedade dos devotos do santo. Foi num gesto tão singelo que se reflectiu a espiritualidade de S. Martinho e a sua vivência evangélica. O apelo à renúncia, à partilha e o preceito muito explícito de vestir os nus demonstra quão inequívoca era a sua fidelidade ao espírito evangélico, e foi esse amor aos mais carenciados que o tornou tão popular.
Nesse acto, S. Martinho, cujo nome significa “pertencente ou relativo a Marte”, deixa de ser um soldado do século, para se assumir, definitivamente, como soldado de Cristo (miles Christi), termo pelo qual eram designados os ascetas e monges.
Foi discípulo de Santo Hilário de Poitiers, famoso pelos seus escritos dogmáticos. Tal como o seu mestre, também ele combateu a heresia do Arianismo, que tinha muitos adeptos na Gália. Martinho viveu também como eremita e foi o primeiro a fundar mosteiros no ocidente latino (Ligugé, Marmoutier). Foi bispo de Tours (ainda que contra a sua vontade). Nesta cidade, morreu em 397 com fama de santidade. O seu túmulo transformou-se num dos principais lugares de peregrinação do mundo ocidental. Após a conversão e baptismo de Clovis (em 497), S. Martinho foi elevado à categoria de santo patrono dos Francos e Tours transformou-se num dos principais centros culturais dos Carolíngios.
Tal foi a impressão que o gesto de S. Martinho causou no espírito dos cristãos da época que a veneração da pequena capa, a “capella sancti Martini”, num oratório da igreja de Tours, cunhou um novo vocábulo nas línguas ocidentais: capela (designando o nicho da igreja onde estava exposta e era venerada a “capinha” ou capella de S. Martinho - o diminutivo designava a metade da capa que lhe sobrou, depois da famosa partilha).
E foi assim que um dia, quando já não possuía outra coisa senão as armas e um simples manto de soldado, no auge de um Inverno que fustigava com maior aspereza do que o habitual, de tal forma que a força do gelo matava muita gente, ele encontra à porta da cidade de Amiens um pobre nu. Como ele suplicava aos transeuntes que tivessem piedade dele e todos passavam adiante sem ligar ao desgraçado, o varão cheio de Deus (i.e. S. Martinho) compreendeu que aquele homem lhe estava destinado, uma vez que os outros não lhe davam esmola.
Mas que havia ele de fazer? Não possuía nada senão a clâmide, com a qual ele se cobria. Já se havia desfeito de todo o resto numa boa obra idêntica. E assim, brandiu a espada que trazia à cintura, dividiu a clâmide ao meio, deu uma das partes ao pobre e cobriu-se com outra. Entretanto, alguns dos que assistiam começaram a rir-se, porque lhes parecia desfigurado com aquele uniforme mutilado. Muitos, todavia, que tinham sentimentos mais sãos, lamentaram profundamente não terem tido nenhum gesto semelhante, porque, tendo eles seguramente mais posses, estavam em condições de vestir o pobre sem necessidade de eles próprios ficarem despidos.
Na noite seguinte, quando ele se entregou ao sono, viu Cristo vestido com a parte da sua clâmide, com a qual havia coberto o pobre. Foi convidado a observar muito atentamente o Senhor e a reconhecer a veste que ele havia dado. Logo, ouviu Jesus dizer em alta voz à multidão de anjos que o rodeava: “Foi Martinho, que até agora não passava de um catecúmeno, que me cobriu com esta veste.”
Na verdade, o Senhor estava bem lembrado das suas palavras, Ele que outrora dissera: “Sempre que tiverdes feito algo a um destes mais pequeninos, é a mim que o fizestes”. Declarou ter sido Ele próprio que foi vestido na pessoa do pobre; e para confirmar o testemunho de uma obra tão boa dignou-se apresentar-se na mesma indumentária que o pobre havia recebido.
São muitas as tradições no Norte da Europa associadas a São Martinho (o ganso de S. Martinho, as crianças a cantar pela rua com lanternas e pedindo guloseimas pelas portas, as fogueiras de S. Martinho, as procissões…). Na Espanha (e muito particularmente na Galiza), é o dia ideal para a matança do porco. Em Portugal, organizam-se magustos, com jeropiga e água-pé, e prova-se o vinho novo. Em anos favoráveis, S. Martinho brinda-nos com o seu Verão, uma forma de abrandar a aspereza do frio, tal como fez com o pobre a quem acudiu.