A noite é noite, mas é também mais do que noite.
A noite é também símbolo, e, como todos os símbolos, possui aspectos diversos. É ambivalente a noite, bem o sabemos. A noite é trevas e é luz. Contraditória como todas as metáforas vivas. E a noite tem este potencial metafórico. As suas asas levantam voos para lá dos entendimentos humanos.
Os meios de comunicação social informaram e as livrarias mostraram e venderam. E aí continua à espera de leitores. Um livro novo, claro.
Lídia Jorge presenteou-nos com um novo romance. «Misericórdia» é o título. Um título com raízes num pedido da mãe. Disse-o Lídia Jorge e escreve-o ela no final da obra numa singela dedicatória: «A Maria dos Remédios, minha mãe muito amada, que me pediu que escrevesse esta história.» A história de uma mãe, que também lhe deu o título, que já não a pôde ler. Como se intuirá facilmente, estamos perante um nó de razões que convidam à leitura deste livro singular, que é também, um hino à vida, a uma mãe e, nela, a todas as mães que vão avançando nos anos enquanto os filhos vão enfrentando os trilhos da vida.
Uma obra literária que começa com a noite e com a noite termina. Dir-se-á que é a noite uma protagonista que anuncia a necessidade de misericórdia.
«Aqui onde me encontro, mesmo em tempo de Primavera, quando os dias costumam ser do tamanho das noites, a noite é sempre mais longa que o dia. Sabendo disso, é precisamente a meio da noite que a noite vem ter comigo, dirigindo-me perguntas inimagináveis como se fosse aquele gato pardo, muito antigo, que se chamava esfinge.» São assim as primeiras palavras do romance.
Fica indicado o espaço da narrativa. Não é Tebas, a cidade grega da mítica esfinge. Mas é o local onde o tempo é mais do que tempo, e a noite é sempre mais do que noite. É a noite não dormida, mas carregada de pedaços de vida vivida e de «perguntas inimagináveis». Poderá ser a pergunta, tipicamente infantil, «Quantas cidades tem o mundo?» do início da narrativa, como será a pergunta radical, «No teu entendimento, o que é o além?» da penúltima página. E a resposta chega metaforicamente: «Um livro que não tem fim, cada página uma vida, cada vida uma página, quantas mais vidas mais páginas. Isso é o além». Mas a noite é implacável. Aproxima-se ainda mais para formular um pedido que é também a mais radical das perguntas: «Certo, mas então diz lá se sabes, quem folheia esse livro.»
A noite é, portanto, mais do que a noite. Quantas noites são a noite?
Há a noite cosmológica, a noite que logo nos vem à mente quando ouvimos aquela palavra. É a noite criada pelo movimento de rotação da terra integrada na maravilhosa dança das estrelas do Universo. Noite variante conforme as estações do ano e de acordo com a posição em que nos encontramos na esfera terrestre. Mas noite da luz de miríades de estrelas maravilhosamente alinhadas no espaço sem fim.
Há a noite de quem nela trabalha para ganhar a vida e servir os outros, como o padeiro a amassar o pão ou o médico e enfermeiro no hospital a tratarem os doentes. Mas, sobretudo, há a noite da recuperação das energias vitais, do repouso e do descanso por que ansiamos depois de um dia de trabalho. É a noite do sonho e do sono. Do sono que é um oceano de inconsciência. Do sono que se diz ser a imagem da morte. Também do sono da paz. Da paz que é ainda o sonho sonhado desde o princípio da humana realidade.
Mas há também a noite que não atrai o sono, mas o afugenta. É a noite das lembranças e das preocupações e segredos escondidos, dos sonhos obsessivos, das derrotas e glórias dos dias. É a noite da insónia que nos traz presos, como reféns, a forças obscuras da existência que nem nos permitem usufruir do repouso desejado, e que teimam em permanecer como se em nós fizessem morada. O seu sentido de todo nos escapa e, por isso, essas noites de vigília forçada são ainda mais noites que a noite. Mas a insónia é tão bivalente como a noite. É que essa noite de insónia é também a noite que se faz luz, feita de imaginação fulgurante e criatividade pujante para o artista das coisas e o poeta das palavras ainda por dizer. Ou mesmo para o cientista das hipóteses e leis ainda por formular. Insónia, vigília forçada primeiro, é vigília saboreada depois. Sonho sem sono, dádiva dos deuses, a insónia é, assim, o tempo oportuno de epopeia criadora.
Há a noite das vigílias intensamente voluntárias. É a noite criadora do silêncio que convida à contemplação da beleza do infinito céu estrelado, que propicia a reflexão pessoal sobre o mistério insondável da existência. É a noite da oração serena ao Deus Desconhecido ou ao Deus Revelado, louvado e cantado na vigília nocturna de um mosteiro, escondido na extensão de um deserto, de um vale, ou até elevado nos píncaros da montanha mais alta de uma serra, onde a terra se casa com os céus e a oração do monge abarca a extensão dos povoados humanos. Ou ainda, também, o mosteiro instalado ao som da voz e da luz do espírito, um local sagrado onde o mistério do «Além» se manifestou - e manifesta - de uma maneira mais viva.
Há a noite dos místicos. É a noite em que a ambivalência da noite é mais ambivalente ainda. Seja, exemplarmente, a noite escura do «Cântico Espiritual» de São João da Cruz em que a noite são trevas e desespero da alma, mas também escadaria da união amorosa com a intimidade divina. Seja também o poema «Noite Escura» de Santa Teresa em que a densidade da noite se converte em comunhão divina. Seja ainda, mais junto a nós, a «escuridão da fé» de que nos falou a Madre Teresa de Calcutá. Em superior coincidência dos opostos de filósofos, é nos místicos que assume forma de excelência o grito do salmista por Deus: «Se disser “talvez as trevas me hão-de ocultar / e a luz, em volta de mim, se fará noite”, / nem as trevas, para Vós, têm obscuridade: / noite brilha como o dia / e a escuridão é clara como a luz.» [Salmo 138 (139), 11 e 12]. É na noite que mais brilha a luz da fé. Assim rezam os místicos.
Mas há também a «noite escura» dos humanos, muito humanos, perdidos que estão nas encruzilhadas da vida. É deles a «noite escura» daqueles momentos de angústia existencial de onde desaparece toda a clareza e distinção para o necessário discernimento vital. É a noite das ideias confusas que bailam no silêncio da escuridão de um problema para que não se encontra solução. É a noite das incertezas e das dúvidas insanáveis que nos assaltam remexendo o sossego do nosso espírito.
Poder-nos-íamos continuar a espraiar por outras noites da noite. Deixemo-las ao cuidado do leitor. Porque a noite é muitas noites e cada leitor terá as suas, aquelas que a vida lhe foi – e vai - oferecendo.
Também o ano tem tantas noites! Noites vulgares umas, e festivas outras. Seja a primeira das noites do ano, vivida com folguedos de festa e vivas de felicidade para o ano novo. Sejam as noites de marchas, arraial e sardinha assada, dos Santos populares, de Santo António, São João e São Pedro. Sejam também as noites festivas do ano litúrgico. Pensemos na Noite de Natal, com a ceia de família coroada com a Missa do Galo. Lembremos, particularmente, a Noite Pascal, a noite de vigília festiva do Cristianismo a cantar o Exultet e o Aleluia da Ressurreição. Noite em que, por excelência, brilha a luz da Fé. De quem a tem e de quem, não a tendo, fica em alerta para o sentido do Mistério do Humano, muito humano, no qual se compendia o Mistério do Ser. Anda por aí, certamente, o mistério da misericórdia.
Talvez seja de «noite escura» aquele dia em que uma mãe pede à filha para escrever uma história vivida e pensada nas noites de vigília, voluntária ou involuntária, de contemplação ou profunda reflexão pessoal. E o livro chama-se «Misericórdia». Misericórdia por que clama o mundo humano. Livro onde entram as histórias de todas as vidas que constituem o «Além», sedentas por conhecerem «quem folheia esse livro». Conhecerem e saborearem. Na plenitude da luz.
Guarda, 10 de Novembro de 2022