Histórias que a Vida Conta


“Pelo Natal, lua cheia, casa cheia”- diz o povo. Pois sim, mas o Natal já lá vai e a lua continua a sua roda, engolindo o ano às colheradas de 28 dias. Vai mudando de cara, todos nós sabemos, mas não deixa de cumprir os seus rituais propiciadores ou prenunciadores, com que alimenta o Adagiário e parece até não se ter sentido muito com o facto de lhe termos pisado o chão, há meio século. Continua a mandar-nos sábias mensagens, a inspirar os poetas e a iluminar os destinos. Corre pelos campos, espreita as ruas das cidades e acaricia os telhados das aldeias, diverte-se no emaranhado dos bosques e descansa nas clareiras das florestas, banha-se nas correntes, molha as pedras e penhascos, faz brilhar a neve que neles pousa, e, lá pelo alto, joga às escondidas com as nuvens mas esconde-se nelas quando troveja. É amável, bisbilhoteira ou mal-encarada conforme lhe dá no capricho. Mas em qualquer ponto do planeta que a vislumbremos é consoladora e amiga no seu resplendor. Faz boa companhia. Faz-nos sentir mais humanos e merecedores da paz universal. Faz com que no nosso planeta se apaguem as mazelas e ele se vista de prata e brilhe no firmamento como uma estrela mais para fazer inveja ao Sol.
Eu gosto da lua. Gosto que meçam o tempo pelo número de “luas” ou datem os acontecimentos maiores pelas suas fases. Gosto dela quando é cheia, gloriosa e opulenta, gosto dela quando mingua e se vai despedindo noite-a-noite até adormecer no escuro, gosto dela quando vai crescendo, muito menina e esperançosa, até se tornar mulher, toda vestida de luz. Gosto dela o ano inteiro, mas aquela de que mais gosto é a de Janeiro. “Lua, a de Janeiro / Amor, o primeiro!” – diz o povo e acho eu.
Porque em Janeiro, ela levanta-se cedo. Quando a noite se fecha já ela lá está, de sentinela. Não se espraia deleitosa e deliquescente, em cenários de amor, subindo enorme e lenta, sorvendo as estrelas e a Via Láctea – isso é lá mais para Agosto – mas fria e altaneira, régio espelho do Sol no seu manto negro orvalhado de astros. Uma Senhora!
E, como todas as “outras”, com fases. Ou faces ... Como todas as “outras”, cada noite sua cara: uma vez mais um bocadinho, outras menos um bocadinho, outras ainda coisa nenhuma e, de quando em vez, eclipsa-se! Artifícios de mulher bonita! E poderosa… Porque, no seu “ofício” de lua, regula o mundo, comanda o tempo, pauta até a vida das mulheres regendo-lhes os ciclos férteis. Vinte e oito dias – de lua a lua, de cheia a vaza com os quartos pelo meio. Nasce, cresce, diminui, desaparece... Renasce e recomeça, num eterno retorno, marcando numa periodicidade sem fim os ciclos da vida. Símbolo dos ritmos biológicos controla todos os planos cósmicos regidos pela lei do devir, é a rainha dos três cetros: o da fertilidade, o do tempo que passa, o do saber teórico, conceptual, racional, espécie de conhecimento por reflexo tal como ela própria é reflexo do Sol.
Foi aliás esta dualidade universal que Sophia de Mello Breyner condensou no “Poema de Amor de António e Cleópatra”:
Pelas tuas mãos medi o mundo
E na balança pura dos teus ombros
Pesei o ouro do Sol e a palidez da Lua

Ela, Sophia, a mais solar das vozes, toda poesia, toda mulher, celebra ainda em verso as felizes núpcias da sua condição de humana em êxtase:
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua (Poesia 1, 1944)

E há algo de feminil e trágico, entre véu e sudário, que se desprende do halo da esfera lunar, algo que nos lembra os versos dos poetas excessivos:
Vai alta a lua na mansão da Morte
Já meia noite com vagar soou (...), Soares de Passos (Noivado do Sepulcro, 1856)

ou dos poetas doloridos:
A lua sobe no horizonte
E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima em mim (...), Fernando Pessoa/Álvaro de Campos (Ode Marítima, 1915).

Mas tal como há quem diga que o que faz bonitos os olhos é o olhar, também o que faz da lua o seu encanto é o ... luar, em que a magia lhe vem daquela pureza envolvente, daquela superior distância que tudo parece desculpar, acendendo uma liberdade transgressora feita de todas as ingenuidades do mundo. Foi assim que na singeleza da sua pena de poeta popular, Augusto Gil tão bem o retratou no seu poema “O Passeio de Santo António” que incluiu na obra a que chamou precisamente “Luar de Janeiro”:
(...) O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais ...
Os rouxinóis ouviam-se distantes.
O luar, mais alto, iluminava mais.

De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito
(...)
Sem suspeitarem de que alguém os visse
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
- Oh, Frei António, o que foi aquilo?

O santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
- Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada […]

Gracioso e comovente o quadro, a reconciliar-nos com o gosto e o prazer das coisas simples.
Elogio a este luar primeiro que na voz do poeta se fez estrada do divino e, se bem o lermos, voz de uma certa ironia picante no denunciar do quadro vivo tão ao gosto dos românticos. Um bom pretexto para nos perguntarmos se, nesta faina de encontrarmos palavras para desejarmos um bom ano a vir, não seria atinado e bem generoso desejarmos para o ano que entra com o próximo Janeiro, um ano de…Boas Luas ?!