DA BOCA PR´A FORA- “… mas olha que ele até se farta de dizer bem de ti…!

- “Ora! Isso é tudo da boca pr’a fora que eu bem sei o que é que ele pensa e não diz…!”Eis aqui um bocado de conversa apanhado a eito, com uma expressão que qualquer um de nós poderia usar, em “estado de desconfiança”, relativamente a qualquer declaração, afirmação ou juízo ouvido a outrem. Porque a boca é um lugar pródigo do nosso corpo: além de no-lo abrir para a respiração e para a alimentação, modula o som que, mais atrás, as cordas vocais produzem, sagrando-se senhora e mestra da nossa fala. E isto, como sabemos, de conluio com a nosso pensar e o nosso sentir, numa ligação – essa sim, silenciosa e obreira – ao nosso cérebro (mais precisamente ao córtex, claro, e, com produtiva exclusividade, ao lóbulo frontal esquerdo do nosso cérebro). Isto faz dela a “fada madrinha“ da Comunicação. Usamo-la em múltiplas conformações e jeitos para um diapasão fértil de expressões comunicacionais: fala, canto, [sor]riso, dúvida, interrogação ou desdém, assobio ou beijo… E em termos de “a boca pr’a fora” saem conversas fiadas, ou juras de amor, recados ou repreensões; discursos, inflamados ou não; orações, de sapiência ou de altar; elogios ou condenações, felicitações, panegíricos ou sermões…Começando por estes últimos, como não lembrar, logo na Idade Média, os nomes maiores da Igreja: S. João Crisóstomo (347-407 d.C.) e o nosso castiço Santo António de Lisboa (1195-1231). O primeiro, Patriarca de Constantinopla, Doutor da Igreja, apelidado de “crisóstomo”, palavra que em grego queria dizer ‘boca de ouro’, o que traduzia o primor e a força das suas homilias. O segundo, pregador de tal valia que até os peixinhos levantaram a cabeça fora de água para o ouvir…!E entremos um pouco na “má-língua” (que tem tudo a ver com o que da boca sai…) que é uma toada contumaz das bocas femininas, tão velha que nos leva às arrecuas até ao séc. XV e a esta verdadeira joia da crítica filial, colhida na obra coetânea “Vida de uma Monja”: ”Meu padre era manso e humildoso e falava mui poucas vezes. E bem cuidavam os que o não conheciam, que era mudo tão pouca era a sua fala […]. E minha madre era mui curiosa, sem maneira. E era de muita fala, com quantos iam e vinham, em tal guisa que semelhava o seu corpo todo de língua. E ela cometia muitas vezes baralha com todas suas vizinhas e bebia do vinho mais que lhe cumpria”1. Talvez que uma resposta a preceito venha nesta quadra da tradição oral popular (recolhida em Celorico da Beira): Quem fala de mim, quem fala? / Quem fala de mim, quem é? / Esse chinelo da rua / Que me não cabe no pé!Mas a boca pode também ser a porta-veículo do sagrado. Lemos na Bíblia:“Que as palavras do livro desta lei jamais se afastem da tua boca; medita-o constantemente e observa tudo quanto nele se contem”. (Josué, 1, 8.)“Inclina o teu ouvido e ouve as palavras dos sábios, aplica o teu coração à minha doutrina, porque te será agradável guardá-la dentro do teu coração e tê-la sempre presente nos teus lábios”. (Provérbios 22, 17-18).João Batista proclama: Eu sou a voz do que clama no deserto: ”Preparai o caminho do Senhor” – voz de quem quebra o silêncio a caminho dos corações atentos à Verdade saída duma boca inspirada. Voz de proclamar, de dizer “à boca cheia”. Mas também há quem fale “à boca pequena” do que provavelmente um dia “cairá nas bocas do Mundo”. Ou quem “minta com quantos dentes tem na boca”, ou quem “ponha a boca no trombone” ou quem, numa vã glória “encha a boca com…”.Mas, como a boca tem céu, e a fala tem vozes que nem sempre são celestiais, há que morigerar os dizeres. Poderá louvavelmente “fugir-(nos) a boca para a verdade” ou também para o adoçar dos termos usados que sejam tidos por pouco convenientes. Tais são os eufemismos (palavra do grego que significa “emprego de palavra favorável”) especialmente usados para partes mais íntimas do corpo humano; ou para as doenças mais graves, tal como “doença prolongada” por “cancro”; ou “companheiro/a” por “amante” para relações familiares mais livres; ou o adjetivo “complicado/a” para “situações de extrema gravidade de previsão catastrófica”; ou ainda, usando fórmulas conversivas no discurso, do tipo daquela que ainda me lembro de ouvir dizer:”… o porco, com sua licença!...” quando se nomeava o bicho.Porém, às vezes, a boca descontrola-se e a voz sai a doer. Tal como naquela história velhinha que meu pai gostava de contar recordando os seus tempos de magistrado e de andanças pelos tribunais. Julgava-se um caso de injúrias e ofensas corporais, num conflito de partilha de águas. O juiz, encorajador, para a ré, muito reticente no seu depoimento: ”Ó senhora Rosa, repita lá assim para mim, o que disse ao seu vizinho…”. A ré, desta vez decidida: “Seu ladrão! Seu chifrudo filho da…da… isso! Seu Salazar! … e só depois é que lhe amandei c’o sacho, senhor doutor juiz…”Mais literário, mas todavia igualmente arrancado à vida, é o relato de uma cena chave do romance “A Ilustre Casa de Ramires” do nosso Eça em que nos avassala o grito da vítima de um compromisso traído: “(O Casco ) erguera o cajado. Mas, num lampejo de razão e respeito, ainda gritou, com a cabeça a tremer para trás, através dos dentes cerrados: ”Fuja, fidalgo, que me perco!...Fuja que o mato e me perco!” E depois de tanta exaltação, sabe-nos bem o silêncio e o “Exercício” que intitula o texto de Nuno Júdice que começa assim: “Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio e vejo saírem de dentro dele as palavras que ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco com o álcool da memória, para que se transformem num licor de remorso; outras, guardo-as na cabeça para as dizer, um dia, a quem me perguntou o que significavam”. Palavras que, de uma forma ou de outra, nos ligam e nos tornam presentes. Vestidas de voz que as transporta para fora da boca, mas de forma tão conformada a ela que até já se fixou o termo-síntese “boca” para significar “dito ligeiro, algo provocatório ou de conteúdo não confirmado ou fiável” muito usado, ou quase só usado na fala, em frases do tipo “Não me venhas com essas bocas foleiras…” ou “Aquilo não esclareceu nada – foram só bocas”.E também aquela “boca” sábia que pergunta: “Quem tem boca vai a Roma” ou acautela: ”Andar com o credo na boca”, mas também aquela que sabe calar: ”Em boca fechada as moscas não entram”. Da boca p’ra fora se nos sai a fala, mensageira e arauto da língua que nos irmana e da qual Rodrigues Lobo nos dá o gentil retrato :” é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar[…].Para falar é engraçada com um modo senhoril; para cantar é suave […]; para pregar é substanciosa[…]. A pronúncia não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem arrancar as palavras com veemência do gargalo[…]”.“Com que voz…” cantarão Camões e Amália com suas bocas inspiradas. Voz-pertença, voz-memória, voz do(l)ente, voz-ausente, re-vive na voz do poeta: ”Horizonte de zeros nebulosos / todos rostos que não são o teu / Um dia sem ouvir a tua voz / é como descobrir que o mar morreu”. (David Mourão Ferreira, “Horizonte”).Lisboa ,30 de janeiro de 2020(Footnotes)1 Simplificação da grafia da minha responsabilidade.