Hoje, 20 de Fevereiro de 2020, encontro-me profundamente triste;

de uma tristeza mortal. Estou mesmo revoltado. Como revoltados se encontrarão muitos portugueses, porque creio que ainda possuem aquela luz da sabedoria do são humanismo que coloca a inviolabilidade da vida do ser humano no centro do pensamento e da acção. Se me deixasse levar por um impulso que hoje me assaltou, o texto poderia começar assim: «É por estas e por outras que os cidadãos têm vindo a perder confiança nos partidos e nas instituições. Depois não se queixem os senhores do poder que os populismos vão avançando e corroendo a democracia.» Mas não vou por aí. Aconselha-se a maior prudência porque o assunto é grave demais. Mas não deixarei de dizer que hoje a democracia portuguesa ficou ferida e mais pobre.Há eufemismos de morte. E hoje andaram pela assembleia da nossa república. Uns chamam-lhe «morte assistida», ainda que «medicamente», e outros «morte digna». São estes os eufemismos modernos para dizer eutanásia, isto é, o acto de dar intencionalmente a morte a alguém, ou seja, matar. Pensando bem, estes termos deveriam expressar um direito de todos. Todo o ser humano tem direito a uma morte digna e assistida com a maior dignidade possível. Mas tal deverá significar o direito a ser assistido dignamente e acompanhado nos derradeiros momentos da vida. Quando aqueles termos passam a significar o direito ou o dever de matar é legítimo perguntar se, atenuando o peso simbólico e real de uma palavra, não se está a pretender sossegar a voz da consciência, pessoal ou colectiva - essa íntima e subtil realidade tantas vezes mal compreendida - que, mesmo quando uma lei positiva feita pelos homens possa dizer outra coisa, não deixará de levantar a voz em nome de uma lei superior, mesmo que não escrita: não mates. Ou, dito de modo positivo: protege a vida. Dizer que se presta assistência a alguém na morte para que tenha uma morte digna, quando se está a matar ou ajudar a matar, poderá ser um modo de expressão muito politicamente correcto para jogadas de ganhos grupais, mas não deixará de ser uma expressão linguisticamente incorrecta e, humanamente, injusta e ofensiva do espírito humano. Diga-se claramente: é humanamente incorrecto ser politicamente correcto subvertendo a linguagem em questões de vida e morte. Humana e politicamente correcta foi, entre outras, a voz de Jerónimo de Sousa, o líder do PCP: «Não matem; procurem que esse prolongamento da vida humana se concretize na nossa pátria.»Diga-se, então, muito claramente: «Morte digna», no sentido mais elementar, é incompatível com qualquer tipo de homicídio e assassínio. Com a eutanásia e suicídio, dito «assistido», é em verdade e essencialmente, a destruição daquela realidade ontológica que é o suporte das mais belas e nobres experiências humanas: a luz do pensamento, o sorriso do amor, a alegria do encontro, a felicidade do dom, a liberdade. Não consigo entender como se invoca a liberdade para se despenalizar o acto de matar uma vida humana. É verdade que a essência do espírito é a liberdade. Mas a vida é o suporte da liberdade, não é a liberdade que é o suporte da vida. Não há a liberdade do espírito, se o espirito não possuir o sopro da vida. Não sou jurista nem constitucionalista, mas andei na escola e aprendi a ler. Leio na Constituição da República Portuguesa que «A vida humana é inviolável» (Artigo 24.º). Não sei percorrer as labirínticas interpretações jurídicas, mas fui folhear os dicionários para saber o que significa «inviolável», não se desse o caso de que, sabendo ler, fosse de tal modo ignorante que não soubesse o que significa aquele termo. E o que pude ler foi aquilo que pensava: «inviolável» é aquilo «que não se deve ou não se pode violar», «que não pode ser devassado», «que não pode ser alvo de violação», «que não deve ser profanado», «intocável», «sagrado». Juridicamente diz-se ainda que «inviolável» é aquilo «cuja inviolabilidade é garantida pela Constituição». Ora aí está, como a vida humana, penso eu. Sendo assim, será dever de todos, e principalmente dos detentores do poder, seja ele legislativo, executivo ou judicial, económico ou médico e do simples cidadão, garantir a inviolabilidade da vida humana Assim sendo, praticar a eutanásia é uma violação da vida e despenalizar a eutanásia é uma violação da vida e uma violação da Constituição da República. Se assim vejo e muitos dos nossos ilustres deputados assim não vêem e não se dignam ouvir os clamores dos cidadãos, eu, que sou míope de olhos corporais, será que tenho de concluir que também sou míope de olhos da mente? Consola-me ao menos saber que não estou só e que me encontro muito bem acompanhado com associações e organismos a que os nossos deputados fizeram ouvidos de mercador.Mas, podemos ir mais longe. Atrevo-me a avançar mais na minha miopia literária. Se nos centrarmos no significado do verbo «violar» e do seu étimo latino «violare», encontramo-nos perante o acto de «agredir com violência», «exercer violência», «maltratar», «estragar», «danificar». Se assim é, então a eutanásia é uma agressão violenta contra a vida cujos danos vão muito além de uma situação individual, mas se estendem ao direito e à saúde colectiva de um povo. Despenalizando a eutanásia, a comunidade ficará mais doente e mais doente ficará um Estado cuja existência só tem sentido se servir a vida e o bem da vida. Da vida de todos. Particularmente daqueles que mais precisam por se encontrarem em situações de debilidade física e espiritual.E tudo em nome da liberdade individual e da dignidade pessoal, dizem os arautos destas propostas legislativas, hoje aprovadas. Não se pensa que a liberdade individual não é nada quando uma sociedade abandona um cidadão à sua fragilidade e lhe abre a porta para a morte. Não se lembra que a dignidade na morte não pode significar a indignidade de tirar a vida. Não se lembra que, em vez de se encontrar caminho legal para matar, importaria criar condições para a generalização de um digno acompanhamento na vida até final. Não se lembra que as leis de um Estado civilizado e moderno ou são leis de protecção e defesa da vida dos cidadãos ou então são leis iniquas cinicamente defendidas. Hoje, 20 de Fevereiro de 2020, estou profundamente triste. Encontro-me até revoltado. Hoje - assim o creio e assim o sinto - pelo veredicto malfazejo de deputados a quem faltou a sensibilidade sapiencial para defenderem a saúde da vida, o povo português ficou mais doente.Guarda, 20 de Fevereiro de 2020