Julho foi o mês mais quente desde que há registos.
Assim ouvi e li, assim ouvimos e lemos. O de Agosto tem seguido pelo mesmo caminho e a lembrar, por contraste ou oposição, outros meses dos invernos passados. Com dias muito frios, obviamente. Mas neste mês de Julho e Agosto, tão quentes para o nosso sentir, houve gente que sentiu uma frescura extrema e chegou a tremer ligeiramente de frio. A relatividade dos sentires humanos desafia, como sempre desafiou, o nosso pensar e o nosso saber. Um sente calor e outro sente frio no mesmo lugar e no mesmo tempo. Afinal, está calor ou está frio? Era desta e doutras perguntas semelhantes que se alimentava o cepticismo antigo. O cepticismo actual possui outras subtilezas. Mas o tema presente não são os cépticos do presente e os leitores não serão cépticos, imagino eu. E eu também não sou.
Há encontros casuais do dia-a-dia que são reencontros com o dia-a-dia de outros tempos. Tempos de outras vidas, outros fazeres, outros hábitos e outras linguagens. Haverá por aí alguém que não tenha essa experiência?
Foi publicado recentemente um livro de António Mega Ferreira (1949-2022) intitulado “Roteiro Afetivo de Palavras Perdidas”. Cada um de nós poderá construir também o seu roteiro. E, quando a memória falha, há momentos que nos fazem avivá-la.
Foi em Fevereiro, a meio da manhã, num dos dias mais frios do ano. Encontrávamo-nos, em família, sentados numa mesa a um canto de um café. Todas as mesas estavam ocupadas, excepto uma. Aquela que mais próxima se encontrava da porta por onde entrava uma aragem fria, sempre que era utilizada. Chega um casal, olham os dois todo o espaço relativamente pequeno do café e acabam por dirigir-se para aquela mesa. Precisamente ao nosso lado, preparavam-se para se sentarem.
- Vê lá se vais ficar arreganhada. Passa para este lado. – Disse o cavalheiro. A senhora acedeu e logo trocaram de lugar.
As nossas mesas encontravam-se lado a lado e não pudemos deixar de ouvir claramente estas palavras que o cavalheiro dirigiu à senhora.
O que vem aqui para a história poderia ser a troca de lugares, expressão da cortesia de um cavalheiro. De facto, inicialmente aquela senhora ia sentar-se no lugar situado mesmo de fronte para a porta de entrada, um lugar mais exposto à aragem fria da rua. O que vem aqui à colação é a palavra “arreganhada” que eu já não ouvia há muito tempo e que me ficou esquecida no corriqueiro viver, apesar de a Guarda ser uma cidade bem fria onde facilmente encontraremos gente arreganhada. E, de repente, a palavra teve em mim ressonância afectiva. Faria ela também parte do “Roteiro Afetivo das Palavras Perdidas” do multifacetado de António Mega Ferreira?
Chegado a casa consultei este livrinho. Não, não se encontrava lá esta palavrinha de grande dimensão afectiva para mim. Da minha infância e juventude. Da minha aldeia. Das suas gentes, que tanto a utilizavam nos invernos de frio rigoroso com casas só aquecidas por uma lareira, na cozinha, ou, numa sala, pelo borralho de uma braseira. O adjectivo «arreganhado» fazia então parte do vocabulário corrente. Pelo menos lá, na minha aldeia, em que o calor tinha sempre a cor natural de cada uma das estações. Calor era calor e frio era frio. E, quando o frio era frio e o dia era de gelo, lá vinha o “arreganhado” na usual linguagem da terra.
Como os tempos vão sendo outros! Ainda bem. Vou à minha aldeia com frequência, em todas as estações, e não tenho memória de ouvir lá tal palavra nos tempos recentes e até mais longínquos, seja porque se encontra deserta seja porque também ali caiu em desuso. E fui ouvi-la num café da Guarda. E ouvi-a com alguma nostalgia dos velhos tempos. Há sempre saudades da infância como uma espécie de «paraíso perdido». E quem não tem saudades da sua, ainda que ela tenha sido passada mal aquecida ou arreganhada de frio ou de outras ausências e presenças existenciais? E não dizem os entendidos na matéria que o «regresso à infância» ou, melhor dito, ao «útero materno» constitui um dos arquétipos mais fortes no mundo complexo do nosso psiquismo?
Passou aquele Inverno e não voltei a ouvi-la. Passou outro Inverno e não a ouvi. Nem sei se a voltarei a ouvir tão cedo. Também as palavras se vão perdendo e, perdidas, vão sucumbindo à escassez de falantes. Até que um dia, talvez, haja alguém que lhe dê vida, ainda que seja descontraidamente, alheio às ondas da fluência dos falares dos dias ou dos frios gélidos dos tempos. E foi naquele dia, naquele café minúsculo, onde a encontrei e dei comigo, por momentos, a sondar os tempos do tempo que atravessa as vidas.
Aquela palavra não só não se encontrava no “Roteiro Afetivo das Palavras Perdidas” de António Mega Ferreira como nem sempre a encontrei nos vulgares dicionários de trazer por casa, embora conste nalguns como regionalismo ou provincianismo no final da lista de significados que os dicionaristas encontraram para aquele termo, incluindo o mais comum que é a situação daquele que, como lobos ferozes e outros animais da mesma espécie, abrem a boca e, enraivecidos, cerram os dentes dos maxilares, preparados sempre para o ataque. Sem surpresa, foi como regionalismo que fui encontrar o «arreganhado» em dois dicionários caseiros dos falares das beiras e fui encontrar também o termo nos modernos dicionários informáticos de consulta rápida. Curioso, pensei então! Aquela palavrinha, que pareceu ter só lugar no grupo do linguajar beirão, ganhou nova vida nos meios tecnológicos, onde terá perdido o carácter regional e ganhado modernidade global.
E foi num dia de Julho de elevada temperatura que vim redescobrir aquela palavra. Não que a tenha ouvido como a ouvira em tempos naquele espaço exíguo de um café, mas senti-a a rodear um jovem peregrino da Guiné Bissau que, não conhecendo a palavra, parecia vivê-la numa espécie de lamento penitente, ele a quem fora dito, à saída do seu país, que em Portugal fazia calor nestes meses de Verão. Afinal, o entardecer daquele dia de Julho era frio ou quente?
Naquele dia de Julho, na cidade da Guarda, fizera muito calor, pelo menos para os seus habitantes. Um calor, um calor verdadeiro, projectado daquele Sol que parecia até abrasar as pedras graníticas da calçada, quanto mais a pele frágil dos humanos. Mas eram os humanos, ou muitos deles, que se encontravam abrasados pelo entusiasmo de uma fé juvenil. E estes jovens, provenientes de uma série de países, encheram as ruas ordeiramente, a cantar, a dançar e a rezar. Nunca terá havido na cidade da Guarda uma situação como esta em que o calor físico, medido pelos termómetros, tenha sido ultrapassado pelo calor espiritual destes jovens entusiastas a dizerem com o Papa Francisco que «Cristo vive». Que vive neles e com eles e com «todos, todos, todos», mesmo quando o ignoram, o negam, ou mesmo Lhe façam guerra aberta, ou velada na penumbra dos dias, em galerias mediáticas internacionais, nacionais, regionais e locais, arreganhados, como parecem andar, à espreita de oportunidades para, com arreganho, desembainharem as espadas quais soldados às ordens de Herodes. Há dois mil anos como hoje, Cristo é «sinal de contradição» nos reinos mortais do mundo dos homens.
E foi num dia destes de Julho, quentes de calor físico e quentes do calor que alimenta o Espírito, que, à tardinha já adentrada, quando a luz solar deixou de iluminar os espaços, um jovem peregrino da Guiné Bissau me apareceu com aspecto de frio. É verdade que o Sol tinha desaparecido e que o ar já aparentava tal frescura que aconselhava um passeio suave pelos jardins, onde as folhas das árvores se moviam agradecidas. Mas isso seria para um beirão da serra, acostumado ao frio gelado dos invernos serranos.
Um velho axioma da filosofia clássica reza assim: «Quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur». Ou seja, aquilo que é recebido, é recebido à maneira de quem recebe. Seja a água da fonte que cada um aproveita conforme a vasilha que tem, seja o calor, físico ou espiritual, que nos envolve, Seja a mensagem do Galileu anunciada no Mar da Galileia, seja ela anunciada num grande auditório, num jardim citadino ou num parque aberto onde se sente a brisa de um rio.
Guarda, 17 de Agosto de 2023