No sábado passado (7 de Outubro), o Mundo acordou para uma realidade negra de desespero e de agónica desesperança.

As notícias que inopinadamente nos chegavam de Israel e do infame ataque do Hamas ao seu território e à sua gente, pareciam trazer até nós, os mais velhos, vivos e dolorosos, os massacres de 15 de março de 1961, no norte de Angola, obra dos guerrilheiros da UPA (União dos Povos de Angola, de Holden Roberto, que mais tarde daria origem à FNLA) que violaram, mataram e decapitaram largas centenas de fazendeiros portugueses, suas famílias e seus trabalhadores negros, fazendo nascer em todo o Portugal um aceso espírito de defesa e retaliação. Salazar, que ditou o caminho na histórica palavra de ordem: “Para Angola, rapidamente e em força”. Foi assim que começou aquela que foi a “nossa” guerra, com a mobilização de toda uma geração - a minha geração – que partiu, em armas, para as “colónias”, que, entre o horror e o temor, aplaudiram fervorosamente as tropas, num patriotismo que as circunstâncias especialmente cruéis e incertas, tornavam se não genuíno pelo menos, naquele momento, sincero.
Voltando ao inominável ataque do Hamas a uma festa de música que decorria perto da fronteira do Sul de Israel, a sua imprevisibilidade e a consequente incapacidade da sua prevenção pelos serviços de inteligência e pelas forças armadas israelitas, numa surpreendente manifestação de impotência e de falta de reação, o elevado número de reféns feitos prisioneiros pelos terroristas do Hamas, a barbaridade que presidiu aos massacres, sem razão nem perdão nos tempos em que vivemos, levaram as autoridades de Israel, passado o espanto, o horror e o luto dum primeiro tempo e carregando ainda a vergonha nacional de se terem deixado surpreender desta maneira pelos guerrilheiros, a jurar vingança, aplicando sem uma falha ou complacência, a conhecida lei de Talião :”olho por olho, dente por dente”. Os judeus não esquecem nem desistem. Logo, o cerco que imediatamente montaram à Faixa de Gaza vai ser férreo e vai durar o que for preciso – até à entrega dos reféns? E se não, até que não reste pedra sobre pedra? E a uma tragédia consumada vai agora somar-se uma outra: com a Faixa isolada e incapaz de receber mantimentos, água, eletricidade, combustíveis e medicamentos (tudo, enfim!) os pobres habitantes de Gaza, que, na sua grande maioria, nada têm que ver com os crimes hediondos da minoria terrorista do Hamas, estão à mercê de um destino desapiedado e sem reversão à vista ou sequer possível: aquelas crianças assustadas, que, na sua magreza extrema, “quase só têm olhos”, as mães desesperadas por não lhes poderem valer, a grande maioria da população impedida de se manifestar, sob pena de represálias, contra os opressores do Hamas, são alvo de bombardeamentos sucessivos por Israel (só nos primeiros seis dias de guerra ocorreram seis mil bombardeamentos !!), que tudo reduzem a escombros. Israel que, entretanto, prepara uma invasão que terá tanto de destrutiva como de arriscada. Chamou 360.000 reservistas, muitos vindos de diferentes partes do mundo, respondendo ao apelo da pátria e à sede de vingança, militar e psicologicamente preparados para fazer frente a todos os eventuais opositores e dispostos a defender o seu quinhão de terra-pátria a todo o preço.
Na verdade, a Faixa de Gaza já era descrita pelas Nações Unidas como a “maior prisão a céu aberto” do mundo, mas o cerco israelita dos últimos dias está a tornar a situação humanitária ainda mais desesperada (in “Público”, de 12 de outubro, pág. 2, que agora estou a seguir). “Os bombardeamentos destruíram o saneamento básico e a distribuição de água que servem mais de metade dos dois milhões de habitantes de Gaza e todos os hospitais e clínicas têm o seu funcionamento gravemente limitado (…)”. A nível político, foi anunciada a formação de um Governo de “emergência” entre Netanyahu e o líder da coligação opositora Unidade Nacional, liderado por Benny Gantz, com o objetivo de se concentrarem exclusivamente na guerra contra o Hamas. E porque é que os estrategas militares profetizam que uma invasão israelita pela Faixa de Gaza comporta assinaláveis riscos? João Ruela Ribeiro, autor do artigo que temos vindo a acompanhar, citando Amos Arel, escreve o seguinte: “A questão é se uma invasão terrestre de Gaza abrangente e longa irá conduzir à vitória ou se irá deixar Israel enterrado num buraco e ainda se o Hezbollah irá aproveitar a deslocação de forças para o Sul e abrir uma nova e mais difícil frente de batalha no Norte”. Retomemos a argumentação de Ruela Ribeiro: “Apesar da superioridade tecnológica e militar de Israel, Gaza, controlada pelo Hamas desde 2007, está bem preparada para um cenário deste tipo. Há minas antitanques em grande parte do território não-urbano. Para além disso, o Hamas, bem como outros grupos armados concentrados em Gaza, têm acumulado experiência e armamento capaz de dificultar ao máximo qualquer tentativa de invasão, incluindo drones equipados com munições como os que têm sido utilizados com sucesso pelo exército ucraniano, explica o Guardian.
A intervenção militar num quadro de guerrilha urbana é tradicionalmente desfavorável a quem tem menor conhecimento do terreno. Acresce que Gaza dispõe de uma enorme rede de túneis, desenvolvidos ao longo dos anos pelo Hamas. Este complexo sistema de passagens subterrâneas, dispondo de centrais de comando e sofisticados sistemas de comunicação será, por certo, uma das principais dificuldades para as forças de ataque israelitas. E não se esqueça o superior nível de capacidade militar que o Hamas demonstrou possuir no ataque de sábado passado, a que acresceu a crueldade brutal revelada, que ultrapassou largamente a de todas as antecedentes operações em que se confrontou com as forças Armadas israelitas. E, mais do que tudo, a tomada de reféns minuciosamente concebida e executada, que será o fator determinante para a quase certa decisão de invasão de Gaza. Poderia inclusivamente admitir-se, num cenário cuidadosamente programado, que essa tomada de cerca de 150 reféns de várias nacionalidades, poderia ter sido o isco deliberadamente escolhido para levar Israel a efetuar a ofensiva terrestre contra Gaza, certo como é que Israel tem orgulho em afirmar que “nunca deixa ninguém para trás”. Ou seja, não seria surpreendente que o Hamas se tenha preparado para uma incursão israelita. Sean Steinberg, da consultora de segurança norte-americana Soufan Group, chama a atenção para o facto de não ser a primeira veza que Israel entra em Gaza, e por isso é de crer que o Hamas, dado o nível de planeamento demonstrado no seu ataque inicial contra civis, esteja a preparar-se para uma invasão israelita de Gaza, como retaliação. (cfr. “Público”, 12/10, pág.3). Assustadora armadilha atravessada no caminho cruzado de dois povos de um só deus e duma só fé mas de todo diferentes entre si. Na nossa história, de ambos tivemos notícia e presença. De ambos temos traços e sangue. Quão difícil é julgá-los…
Lisboa, 13 de outubro de 2023