DIES IRAE, o “dia da ira”. Parece que estamos lá. Abriu-se o livro das denúncias, das aberrações, das maldições.
A Igreja Católica, apelidada de “mãe santa” na invocação de SANTA MADRE Igreja, desvenda-se como escandalosa prevaricadora nas suas mais essenciais obrigações de “maternidade”. Maternidade espiritual tanto como social. É impensável, e por tal, intolerável que ela tenha dado acolhimento a quem tortura crianças, abusando sexualmente delas, marcando-as para sempre com o ferrete da culpa e da revolta inconfessável. Tão claro como isto: admitiu, ocultando, que ministros seus se servissem da sua posição, do seu estatuto, da sua idade, da força da sua perversidade, para violentar crianças que lhes estavam entregues, infligindo uma crudelíssima devastação emocional, destruindo inocências, confiança, lealdade e crença. Foram eles a parte podre dos seus servidores consagrados. Se considerarmos que a Igreja, na sua “santidade”, configura em tradução humana o Corpo de Cristo, talvez possamos encarar metaforicamente estes gravíssimos comportamentos comparando-os aos traços mais cruentos do Seu corpo supliciado: o sangue e as chagas, os espinhos coroando o tempo de agonia no Seu fim terreno. Mas mesmo nesse quadro finalístico, podemos encontrar um gesto último de redenção no facto de, agonizando na Cruz do seu martírio salvífico, Ele ter perdoado ao ladrão seu companheiro de suplício, as suas culpas, só porque acreditou na sinceridade do seu arrependimento. Talvez porque, por delegação divina, a Igreja também possa, no seu seio e no seu segredo, conhecer e perdoar o pecado confessado, talvez também, mesmo quando conhecedora da gravidade daqueles comportamentos, ela tenha admitido como possível resolver as questões que deles impendiam por “via interna”, e mal orientada, direi eu, numa insensibilidade atroz, tenha patrocinado no seu seio, um comportamento esquivo, tal o de uma mãe-ausente, complacente, desleixada, hipócrita ou obcecadamente cega. Esta foi a via desviante da ocultação e, em várias reprises, da ocultação da ocultação.
Mas o Mal não está enterrado: além de conspurcar, fede. Assim, incontido, passou para o exterior o sopro fétido do pecado-crime que grassava pelos esconsos de espaços que deveriam ser abertos, sagrados e limpos. Até que não foi mais possível impedir o escrutínio, evitar a evidência dos factos, a crueza dos testemunhos, e, postos estes a descoberto, assistir-se ao embaraço dos dignitários da Igreja em pedidos alarmados de perdão para faltas imperdoáveis, ou de desculpas às vítimas, mal embrulhadas e tardias.
E estamos aqui. Na revelação clara e confirmada, daquilo que se temia, em números e narrativas de nausear. Meio aturdida, a Igreja pede o perdão das vítimas; mas, tal como a Igreja o entende, o Perdão não faz esquecer a culpa, exige arrependimento e desejo declarado de não voltar a pecar. Ora sabemos que comportamentos desta natureza são inspirados por desejos compulsivos que se caracterizam exatamente pela sua reincidência numa clandestinidade criminosamente imposta à vítima e por isso, não só de muito difícil deteção, como de contenção e tratamento. De qualquer forma, por má formação moral, por malformação de personalidade ou doença mental, ou seja por que razão for, estes comportamentos são socialmente insuportáveis e, no caso específico dos sacerdotes, dados os seus compromissos espirituais, morais e éticos, absolutamente intoleráveis – diria mesmo, como acima, imperdoáveis. A Igreja tem por isso aqui, para si mesma, uma cruz pesadíssima e uma cruz de dois braços abertos sangrando: de um lado as vítimas, do outro os seus abusadores. E um calvário que não acaba com um simples “Mea Culpa”. A Igreja – enquanto Instituição, mas também na sua base laical – não pode, de modo nenhum e para fim nenhum, trair os caminhos de Deus e a ambição da Sua Obra e, por tal, absolver[-se de] tantos pecados quantos os ora levantados, descritos e enquadrados, pela Comissão Independente que, com lucidez e boa-fé, a Conferência Episcopal Portuguesa entendeu nomear para abordar o assunto com a informação objetiva, necessária e competente.
Aqui chegados, aceites as conclusões e procedimentos legais assumidos pela Comissão (que em complemento das conclusões, forneceu ainda um conjunto de sugestões, com a mais-valia de estas advirem de um conhecimento atualizado pelo material recolhido, seu contexto e sua natureza), tendo já assumido a culpa da sua denegação, encobrimento ou relativização das práticas desviantes e dos danos causados por membros seus, ciente do profundíssimo golpe sofrido pela Igreja Universal (na sua carne como no seu espírito), Igreja que nos congrega deve-nos uma resposta à interrogação que todos formulam :
E AGORA?
Agora, que tocam as sirenes de todos os avisos e de todos ataques, a Igreja tem de olhar o mundo sem lentes “regressivas”, tem de olhar para ver; parar para ouvir; ler – escritos e vidas – para entender; aceitar, porque não podemos mais ignorar. Cuidar com solicitude e zelo dos esquecidos e dos ofendidos e… fazer-se de novo ao caminho.
Uma das vias apontadas pelo Papa Francisco parece-me agora claramente providente: desclericalizar-se. Abrir-se ao mundo laical como também à Ciência, ou melhor, às ciências: não apenas as humanas e sociais como as exatas e da comunicação, entendendo as linhas do seu progresso avassalador e verdadeiramente revolucionário, no técnico como no humano propriamente dito. Perceber, com consciência assimiladora e livre, que o mundo mudou e que a pergunta é agora:
PARA ONDE VAMOS?
Com o peso do lastro nefando do Pecado ora nos perturba, é paradoxalmente oportuno para a Igreja Universal e muito particularmente para as Igrejas mais atingidas como a nossa, um hiato de reflexão sobre o como proceder para levantar cabeça. Neste tempo de guerra de ansiedades escondidas ou de fogo aberto que nos calhou em sorte, há que, por todos os meios – os da Vontade como os do Conhecimento – tentar mitigar a dor e restaurar quanto possível os tecidos vitais. Há por isso que redescobrir os caminhos da confiança e, com os nossos Pastores, recuperar o impulso criativo e crente que nos levará ao Futuro.
Dada a sua Vocação, a Igreja tem de se situar ao alcance de todos e qualquer um; tem de buscar, em compaixão e socorro, os rejeitados e os ofendidos; tem de se purificar e municiar no Bem e na Justiça; tem de ser, como lhe compete, o sal da terra a casa comum, o coração da Paz; tem de esclarecer a Fé, dilatar a Esperança, abraçar a Caridade!
Assim Deus a ajude!
Lisboa, 23 de fevereiro de 2023