Estava em andamento um documentário sobre Francisco de Pina. Encontrávamo-nos então em Da Nang, uma cidade situada bem no centro do Vietname, no espaço outrora designado de Cochinchina pelos portugueses.


Naquele dia, o realizador escolheu para as filmagens os espaços da catedral. De manhã foram realizadas no adro, bem grande, onde até havia espaço para a instalação de balizas movíveis de um campo de futebol atapetado de verde. É ali que, a par da via-sacra, se encontram alguns painéis que assinalam a história da igreja vietnamita. Desde a chegada dos primeiros missionários no séc. XVII, até a um quadro que assinala a vitalidade actual daquela comunidade cristã.
Bem saliente, ali se encontra, tal como é imaginado, Francisco de Pina, o jesuíta da Guarda que fez história naquelas terras, quer como missionário quer como linguista. Sente-se que aquelas gentes lhe dedicam particular admiração e respeito, a par de profundo reconhecimento pela sua obra.
Depois do almoço, as filmagens passaram para o interior da catedral. Era uma quarta-feira. Às 17h15 seria celebrada a missa e antes haveria a “Avé Maria”, como nos disseram. Era a reza do terço, dizemos nós. As filmagens deveriam estar terminadas às 16h45. E assim se fez. E logo começaram a chegar os primeiros fiéis.
O realizador perguntou se poderia filmar a celebração eucarística. Foi-lhe concedida autorização, mas a filmagem deveria ser realizada a partir do coro. Eu fiquei num dos bancos. Num curto espaço de tempo, senti-me rodeado de fiéis que, entretanto, iam enchendo a catedral.
Às 17h15 horas, em ponto, a missa começou. Enquanto o celebrante se encaminhava para o altar acolitado por quatro jovens com túnicas vermelhas e sobrepelizes brancas, a assembleia que, então, enchia praticamente todo o espaço da catedral, entoava o cântico de entrada. Toda a assembleia a cantar. A catedral explodiu com a alegria de festa. A festa da fé. Sem qualquer maestro que se visse, numa afinação perfeita, não haveria ninguém que não cantasse, com alma, o entusiasmo da comunhão eclesial. No início, como durante toda a celebração. Seis ministros da comunhão, devidamente identificados com opas brancas e resguardos azuis, saídos em procissão do altar, vieram colocar-se em pontos estratégicos da catedral. A comunhão foi geral. Tudo em assinalável ordem e notável sentido eucarístico. Ninguém abandonou a catedral sem terminar o cântico final da Missa. Inimaginável! Só visto e ouvido!
Obviamente, não percebi uma única palavra, mas participei naquela celebração com inigualável elevação e não menor emoção. Se houve alguma distração da minha parte, foi a imaginar que aquela assembleia de fé cantada em uníssono era também presidida, a partir da eternidade da igreja gloriosa, por este sacerdote guardense que tão estimado foi – e é, na memória de hoje, como verifiquei - por este povo cuja língua tão bem ele falou e, com mestria, soube iniciar o trabalho da sua romanização, razão pela qual a mão de Francisco de Pina se encontra gravada em cada palavra do vietnamita, tal como hoje se escreve. Nela se respira também, dizem os entendidos linguistas, a língua portuguesa.
O realizador da filmagem dizia-me no final: “Senti-me todo arrepiado!» Se a missa é aqui vivida desta maneira, às 17h15 de uma quarta-feira, como não serão as celebrações dos domingos e dias festivos! E sabermos nós que na base da história do cristianismo no Vietname está o P. Francisco de Pina, o jesuíta da Guarda que é evocado, ali, nos painéis exteriores da Catedral!
No caderno de apontamentos escrevi nesse dia: “Esta gente respira fé.” E, intimamente, prometi regressar.
E regressei logo no dia seguinte, quinta-feira, dia 21 de Julho. O nosso hotel encontrava-se ali, bem ao lado da catedral. Naquelas lonjuras orientais o dia começa cedo. A missa da manhã seria celebrada às 05h00 e o sino da catedral tocava diariamente às 04h30 cem badaladas ininterruptas. Meia hora antes, portanto. Fiquei sem saber a razão das cem badaladas. E assim aconteceu nessa quinta-feira. Nessa manhã ouvi as cem badaladas com atenção renovada.
Desci do 3.º piso e deparei com as três enormes portas da recepção do hotel completamente fechadas. Por momentos fiquei desalentado. Sentia que não poderia sair. Surgindo não sei donde, um simpático funcionário deu por mim, assim, meio desorientado. Feito o costumeiro cumprimento com uma inclinação corporal bem acentuada, conduziu-me a uma porta lateral, mais estreita, que me abriu com a habitual cortesia vietnamita. Agradeci com igual cumprimento e, entusiasmado, atravessei a porta como quem reouve a esperança por momentos perdida.
Em três minutos, não mais, cheguei à catedral. Faltavam ainda cinco minutos, mas já se encontrava quase cheia de fiéis. Só os bancos do fundo, junto da entrada principal, se encontravam ainda livres. Foi aí que fiquei. Como na missa das 17h15 do dia anterior, o mesmo entusiasmo, a mesma solenidade, a mesma vivência celebrativa, a mesma participação musical, do início até à última nota do último cântico. Sem ninguém arredar pé!
Naquele dia 24 de Julho era domingo e as filmagens nada teriam a ver comigo. Teria, pois, o dia por minha conta. Tinha a intenção de participar na missa da tarde. Mas o acaso encaminhou-me para a missa das 08h00.
Ainda sem haver tomado o pequeno almoço, saí do hotel, nesse dia, e, sozinho, fui dando uns passos pelas ruas das imediações. Tencionava conhecer um pouco melhor o ambiente da cidade na manhã de um domingo. Ocasionalmente passei por uma das ruas da catedral. Foi fácil concluir que estaria a decorrer uma celebração.
Entrei no pátio onde havia fiéis em tudo o que era um pouco de sombra, que o calor, naquelas bandas, é muito elevado a qualquer hora. As galerias exteriores contíguas às várias portas laterais, encontravam-se completamente cheias. O sacerdote fazia a homilia. Espreitei pela porta do fundo. Vi o interior da catedral completamente cheio. Contornei o edifício e consegui abeirar-me de uma das portas laterais. Era a mais próxima da capela-mor, mas não me permitia observar o interior.
Cedo se aperceberam aqueles fiéis vietnamitas deste peregrino estrangeiro. Com toda a cortesia foram-me acomodando um espaço. A meu lado, uma senhora segreda qualquer coisa a uma criança – filha, certamente – que imediatamente se levanta, oferece-me o seu banco e vai sentar-se ao colo da mãe. Bem ao jeito vietnamita agradeci com um sorriso e cordial inclinação. A criança, feliz, correspondeu ao meu sorriso a olhar-me com estranheza.
Acabara a homilia e, enquanto os fiéis se levantavam, dei dois passos em frente, de telemóvel na mão, para me aproximar mais da porta. De novo fui salvo pela cortesia vietnamita. Aqueles fiéis abrem caminho e convidam-me a entrar para poder tirar a fotografia desejada. E o que descobri foi um deslumbramento. Muitos bancos da frente estavam ocupados com dezenas de crianças vestidas de túnicas brancas, de mãos postas, a cantarem entusiasmadas o credo. Aliás, como toda a assembleia. Fiquei emocionado. Tirei fotografias e regressei ao meu lugar, no exterior, junto à porta. Aquelas crianças faziam, naquele dia, a primeira comunhão.
Naquela assembleia estavam espelhadas a alegria e a beleza da liturgia que celebra a fé. Tive vergonha da nossa fé de ocidentais, tão cansados, que andamos, de Deus.
Abandonei a catedral e vagueei sozinho por aquelas ruas deslumbrado com a vida daquela celebração. Quando despertei desta espontânea meditação, já declinava a manhã. Só então me lembrei que não tinha tomado o pequeno almoço. Sentei-me na primeira esplanada que encontrei e fiz a primeira refeição do dia a lembrar que foi ali, naquela terra, que fora celebrada a primeira missa da missão dos jesuítas na então Cochinchina em Janeiro de 1615. O P. Francisco de Pina, o jesuíta da Guarda, chegaria a estas terras em Janeiro de 1617. A semente germinou e deu muito fruto. Na palavra e na fé.
Guarda, 12 de Outubro de 2022