Viagens ao reino de Clio


Damião de Góis nasceu no ano de 1502, em Alenquer, e morreu em 1574, sendo considerado um dos maiores humanistas portugueses. Com a idade de 9 anos, entrou para o paço real, como pajem e ascendeu a moço de câmara do rei D. Manuel até 1521, ano da morte do rei, passando depois ao serviço de D. João III, que o nomeou escrivão da feitoria portuguesa de Antuérpia, em 1523, com a idade de 21 anos.
Amador da erudição e das artes, humanista, cantor, músico, colecionador de obras de pintura, Damião de Góis viveu numa das cidades europeias que cultivaram o gosto humanista e que permitiram a evolução cultural dos cidadãos. A partir de 1529, aproveitou para viajar pela Europa, em representação oficial ou com carácter privado, e tomou conhecimento com todos os reis, príncipes, fidalgos e povos da Cristandade.
Foi numa destas viagens que conheceu Martinho Lutero, figura central da Reforma Protestante. Em 1534, fixou-se em Itália, a pátria e o centro do humanismo europeu, e, na cidade de Pádua inscreveu-se na universidade. Durante quatro anos prosseguiu os conhecimentos e aumentou a erudição.
Como seria de esperar, Damião de Góis conheceu de perto, e em várias ocasiões, problemas com o Tribunal do Santo Ofício, especialmente durante o reinado de D. Sebastião. Em 1571, o seu próprio genro depôs contra ele, acusando-o de heresias.
Durante o julgamento Damião de Góis defendeu-se com alguns argumentos: «Senhores: Eu estou tão mal disposto e não só de uma doença senão de três, que são – vertigo, rins e sarna, espécie de lepra – que qualquer pessoa que me vir se for próximo se moverá à piedade porque em meu corpo não há coisa sã. Têm-me Vossas Mercês aqui preso há já dezasseis meses, com lhes ter da minha livre vontade confessado os erros em que, sendo mancebo, andei, e dito como me deles tirei há 35 ou 40 anos. Os quais não foram tamanhos que ainda que neles perseverara até ao dia em que me prenderam, que não me deram e concederam deles perdão, se me arrependera deles depois de preso. E, se porventura me querem contar por erro haver sido amigo de Erasmo Roterodamo e seu hóspede quatro meses pouco mais ou menos em Friburgo de Brigónia, cidade católica e universidade célebre da Áustria, não vejo causa por que sua amizade me deva de ser prejudicial, porque ele nunca foi reputado nem condenado por herege, porque se tal fora eu não o comunicara. Da boca do qual, juro pela verdade que devo a meu Senhor Jesus Cristo, que nunca ouvi palavras, nem tivemos nenhuma prática em que ele pudesse sentir senão que era muito católico cristão e inimicíssimo de Lutero e de sua heresia; e assim de outros que, por nossos pecados, ao presente há.
O que tudo visto, peço a Vossas Mercês que me despachem para que esta pouca de vida que me resta acabe em serviço de Deus, em hábito eclesiástico, como o tenho pressuposto em minha vontade, na qual espero em sua clemência e misericórdia que me conserve; de cuja parte lhe peço, que desta minha carta em relação ao cardeal para que Sua Alteza, com olhos de caridade, proveja em minha soltura, ou por via do despacho ou por via dos fiadores carcereiros, para que me vá curar a minha casa, o que aqui não posso fazer. Nosso Senhor tenha suas ilustres pessoas em sua guarda.
Hoje, segunda-feira, 14 de Julho de 1572 – Servidor de Vossas Mercês – Damião de Gois.”
Contudo, após o julgamento foi pedida a sua condenação por ser “herege, luterano, pertinaz e negativo”, pelo que foi condenado ao cárcere penitencial perpétuo, além da confiscação dos bens: «Parece-me que o réu Damião de Góis, por suas confissões estava convencido quando basta, para ser havido por apartado da fé: e que fosse recebido à reconciliação e união da Santa Madre Igreja, o que pareceu a todos os votos; e à maior parte, que fosse reconciliado em forma, na Mesa, diante dos Inquisidores: com cárcere perpétuo, no lugar que lhe fosse assinado, por Sua Alteza, onde cumprirá sua penitência. E que não fosse público: visto os inconvenientes que se consideraram, da qualidade da pessoa de réu, ser muito conhecido nos reinos estranhos, pervertidos dos hereges, que disso se podem gloriar; e o que convém à limpeza e reputação deste reino nas coisas da fé. E bem assim, a cometer erros em que andou fora do mesmo reino, e nele os não praticar com pessoa alguma.
E, assim vistos os autos, com outras considerações que, no caso se houveram. Em Lisboa, a 16 de Outubro de 1572 – Simão de Sá Pereira – Leão Antunes – António Sanhudo – Jorge Gonçalves Ribeiro – Luís Álvares de Oliveira – frei Manuel da Veiga.»
No entanto, considera-se que em 1574 estaria em liberdade pois, segundo o Desembargador do Paço “morreu indo para o Mosteiro de Alcobaça”. A sua morte está ainda envolta em mistério pois aquando da sua trasladação verificaram-se os efeitos das queimaduras sofridas e fratures no crânio que levam a supor que a morte foi provocada por agressão.