Histórias que a Vida Conta


No passado dia 29 de Abril foi feito o lançamento do livro “As Horas de Adriana” de Maria Lúcia Garcia Marques, minha mulher. Decorreu no Salão Nobre do Palácio da Independência, por convite da Sociedade Histórica da Independência de Portugal e da “Sopa de Letras”, uma chancela da Editora PRINCIPIA. A obra foi apresentada por Álvaro Laborinho Lúcio, nosso Amigo e antigo Ministro da Justiça, um dos mais brilhantes comunicadores e dos mais vivos e originais expoentes da cultura deste País. A sua magistral intervenção prendeu e cativou durante quase uma hora uma assembleia que enchia o Salão Nobre, onde se viam professores universitários, juízes e outras destacadas personalidades das magistraturas, no activo ou já jubilados, nossos companheiros da vida profissional que ficaram nossos amigos.
E da nossa outra vida, a de família e a do coração, tivemos a alegria de rever mais outros amigos, recentes ou de longuíssima data, muitos dos quais já não encontrávamos há tantos anos, em alguns casos há décadas. Pela minha parte, matei saudades de companheiros dos tempos do Comando Naval de Angola, bem como dos tribunais e serviços por onde passei boa parte da minha carreira. Sensibilizou-nos particularmente a gentileza de familiares e amigos que se deslocaram de longe ou cuja presença representou, pela saúde e pela idade, algum sacrifício pessoal.
Creio, porém - e isso mesmo foi sublinhado por muitas pessoas presentes - que ninguém deu por mal empregado o seu tempo. É que puderam assistir ao lançamento de uma obra de alta qualidade literária, um livro lindíssimo, apresentado por alguém de superior cultura e qualidade intelectual.
Costuma dizer-se que “elogio em boca própria é vitupério”. Mas, não tendo o livro sido escrito por mim, não tenho qualquer mérito neste belo acto de criação. Sinto, em contrapartida, que devo aos meus leitores, que desde há quase sete anos acompanham as minhas crónicas quinzenais neste Jornal, uma palavra muito sentida sobre esta “história que a vida me contou”. E, se existe um pouco de imodéstia conjugal nesta homenagem que aqui deixo, não tenho dúvida de que, no caso, tal não passará de um pecadilho desculpável.
Não sei, não quero nem posso, apresentar um livro tão bonito e tão bem escrito no espaço de um artigo de jornal e no tempo de elaboração de que disponho. Decidi, por isso, dar a palavra à Autora, em meia dúzia de trechos de alguns capítulos deste “romance de memórias”. É o que passo a fazer, começando por algumas reflexões sobre a escrita e a leitura.
“Adriana gostava de escrever. Para si, por prazer das palavras, por descarrego do sentir, por deixar rasto, quem sabe?”(…) “Eram esses os «dias da escrita» por excelência, porque era toda ela que se expunha. (…) Era um exercício regenerador e muito exigente – encontrar as palavras exactas para o que queria dizer, caminhos de ida e de volta, eiras que o trilho cruzava incessante, lagares de vinho pisado a sublimar-se em álcool. (…) Nesse estado de autocomunhão, Adriana não distinguia entre poesia ou prosa. Mergulhava num prazer mais profundo – no gosto físico da palavra harmoniosa, da frase justa, da cadência elegante ou propiciadora. Acreditava genuinamente no prazer do texto como num prazer exaltante, criação e fruição privativa dos humanos. Cultivado deste modo, toda a palavra é sabor. Natália Correia disse-o numa só linha: «A poesia é para comer!» E Adriana comprazia-se nessa gula”.
“Ler é, finalmente, uma longa história de amor fecundo. Exercido desde a meninice, na aprendizagem letra a letra, sílaba a sílaba, das conjugações felizes de forma e sentido, decifração paciente de troços cada vez mais vastos de mensagens e, posteriormente, de páginas e páginas de ensinamentos, ou, no prazer e no gáudio, de histórias de encantar ou caminhos vários e sedutores de pensamento ou narração”. (…)
“Os textos que lia, longos ou breves, (…) eram simultaneamente viagens e oferendas com que se presenteava desde a infância. Imaginários de paisagens exóticas, aventuras sobre-humanas, amores fogosos, explosões de traição e vingança que faziam prosseguir os enredos, alimentaram prodigamente a sua primeira adolescência”. E, com grande maestria, prossegue a sua etapa sobre o prazer e o deleite de “LER”.
O capítulo dedicado à sua “Mãe” é um primor de estilo e de sensibilidade, em que se revela plenamente como mulher. A propósito da escolha, pela velha Senhora, de uma postura discreta e silente, de “um lugar próximo, mas reservado, do palco e das luzes…”, pode ler-se o seguinte trecho: “O que isso implicara de renúncia ou sofrimento, Adriana ignorava, mas parecia-lhe que ela o traduzira bem quando, numa situação de luto extremo – a morte do pai, a quem votara um amor todo feito de encantamento e fé – afirmara: «Não estou revoltada, nem estou conformada, estou calada». A descrição dos “laços que mais genuinamente as ligaram”, das peças de malha saídas das “mãos de oiro” de sua Mãe, desse “jeito de mãos” que “falava” com “as lãs e as linhas, da arte nos bordados, da busca da originalidade, do prazer da novidade na beleza e na escolha, da procura do equilíbrio, da conjugação harmoniosa dos elementos estéticos, da mestria com que geria o conteúdo da sua caixa de costura, enfim, do toque pessoal que adorava pôr nos trabalhos que executava”, tudo isso é um hino à escrita. Ainda neste capítulo, um excepcional exemplo de como o coração entra na literatura, é a descrição do fim de vida da Mãe, tecida de ternura e caridade.
É assim que, ao longo das mais de duzentas e dez páginas do livro, se descobre a beleza das reflexões, a sensibilidade das personagens, a humanidade e plenitude das histórias, a grandeza e o fado de se ser MULHER.
E aqui, mais um exemplo que ilustra o que acabo de afirmar: escrevendo sobre “O Corpo”, Adriana diz o seguinte: “Ter filhos não é um desporto ou um apetite fácil. É uma aposta, um contrato sério e firme, um pacto de sangue com uma vida toda. E quando isso se faz carne, quando isso nos sai do corpo feito gente, no meio da dor da expulsão e daquele escorregar miraculoso e lento de dentro de nós, quando ouvimos o primeiro choro e nos entregam aquele corpo minúsculo, despido e tremente, nesse momento único, por uns segundos fora do tempo comum, nós, as mulheres, somos divinas!”. É de facto, este, um livro de mulher mas que interessa a todos, porque por ele perpassam as memórias de toda uma geração – a nossa – a que se juntam reflexões que, por uma qualquer razão, num qualquer momento da vida de qualquer um de nós, nos assaltam a alma e os corações.
E mais não digo. A vós de julgar e de… disfrutar.