A memória das palavras


Um dos escritores com mais intervenção na sociedade em que viveu foi sem dúvida Eça de Queirós. Sempre teve uma forte e lúcida (embora às vezes parcial) consciência cívica que começou na Faculdade, quando se juntou ao grupo marcante da literatura da segunda metade do século XIX, a conhecida “Geração de 70”. Após o curso e ao integrar-se no mundo profissional continuou a sua intervenção de várias formas. Antes de se tornar escritor foi jornalista e logo no início da actividade profissional fundou jornais para ajudar a divulgar as ideias e “educar” o povo. A sua obra prima que anda agora na berra por ter sido posta em filme, “Os Maias”, teve por detrás um projecto de análise da sociedade portuguesa em vários volumes e é referido pelo autor em 1880. Ora “Os Maias – episódios da vida romântica” são editados em 1888, isto é oito anos depois. Logo o romance é um aglomerado desses estudos analíticos feitos pelo autor ao longo desse tempo, daí o número de páginas. E, por isso, a obra faz uma escalpelização da sociedade lisboeta daqueles anos. Não de toda a sociedade, mas da classe alta e da classe governante. E com uma ironia excepcional.  É esta faceta de crítica e de influência jornalística que tornam a obra sempre actual.
Esta actualidade fez que o realizador pegasse no romance e o adaptasse ao cinema. Só pode ser uma adaptação devido ao tamanho do livro. E as adaptações pecam muitas vezes por adulterarem o enredo da acção. Aguardemos para ver o resultado. Mas o que queria destacar é a tal actualidade. Quando lemos hoje Eça, quer a obra de cronista, quer a obra romanesca deparamo-nos muitas vezes com um retrato da realidade que hoje vivemos. Quem leu “Os Maias” lembra-se daquela figura exemplarmente ridícula de político que é o Conde de Gouvarinho que não tem valores, que não sabe muitas vezes do que se está a falar, mesmo que o assunto seja simples e que só ajuda os amigos da política. No entanto é ministro e par do reino. Como nos faz lembrar alguns políticos de hoje em dia!
E claro, quem leu “Os Maias”, nunca esquecerá a figura intrigantemente ridícula e excessivamente irónica de Dâmaso Salcede. Essa encarnação suprema dos defeitos nacionais. E quantos ele tem na obra e ainda encontramos por aí quase todos os dias: é só ligar a televisão ou ler notícias nalgumas revistas! A parolice, o provincianismo, a hipocrisia, a cobardia, a falta de coluna vertebral. Se fosse hoje lá o veríamos nos “reality shows” a pavonear-se de camélia ao peito, “como um noivo de província”. Lá o veríamos nos concursos de qualquer coisa, para aparecer na televisão. Teria com certeza uma colunazita, paga por ele e talvez escrita por outrem, num qualquer pasquim de aldeia para se armar em “sabido”, mas cuja cultura não passaria nunca do portal da sua casa. Enfim, não é preciso pensar muito para encontrarmos hoje em dia uma qualquer figura que se pavoneie quer nas televisões quer até nos corredores de S. Bento e que nos faz lembrar inevitavelmente Dâmaso Salcede.
Queria falar da actualidade de Eça e acabei por me perder, ou talvez não. Acho que ninguém duvida que Eça continua actualíssimo. Descontados os exageros próprios de uma literatura realista e da visão particularmente negativa de quem observava Portugal à distância,  vale sempre a pena reler este romance complexo da nossa literatura. E não tanto pelos amores trágicos nele retratados. Antes pela verve irónica com que o autor “pega” no que está mal na sociedade do tempo. Antes pelos episódios da vida romântica com que a obra foi “decorada”. Mais ainda pela delícia da linguagem empregue para nos fazer entrar naquele mundo específico de pessoas, na sua maioria de poucos valores e sem ocupação definida na vida. Pessoas que em dez anos (viagem de Carlos pela Europa) não mudaram nada. A intemporalidade deriva, como disse Machado da Rosa, de «Os Maias serem um fresco caricatural da sociedade portuguesa do século XIX em forma de crónica de costumes, com fortes caraterísticas de romance folhetinesco.» ( Eça, discípulo de Machado?). Aguardemos então para ver como o cinema tratou a obra.