Pontos de Vista


Postada na vanguarda festiva das questões fracturantes, a “coligação” das esquerdas, engendrada depois das legislativas de 2015, saiu-se agora com o anúncio do debate sobre a legalização da “morte assistida”.
E apesar da complexidade da matéria e da transcendência dos valores envolvidos, apesar de nenhum dos actuais partidos que apoiam o governo ter incluído nos seus programas eleitorais uma linha sobre o tema, logo se ouviram vozes dessa maioria afirmando a desnecessidade de qualquer auscultação popular. Referendo para quê? Pois se dispõem de uma maioria parlamentar e os deputados, eleitos pelo povo, estão mandatados para “falar em nome dele”…
Ora, como bem observou, em comunicado do passado dia 15 de Fevereiro, a Associação dos Juristas Católicos (AJC), “num tema que põe em discussão a vida humana e que se mostra fracturante, não seria compreensível que os partidos se sentissem autorizados a aprovar propostas de alteração que nunca propuseram ao eleitorado como parte do seu programa eleitoral e quanto às quais nenhum mandato receberam dos eleitores”.
Os responsáveis políticos não podem fugir ao profundo debate ideológico inerente à abordagem das questões extremamente delicadas que esta matéria suscita.
Convirá começar por se sublinhar o uso de algumas expressões eufemísticas e esclarecer o significado de certos conceitos fundamentais. Na impossibilidade de tratar este tema com o rigor aconselhável num simples artigo de jornal, vou-me limitar a enunciar algumas questões que reputo essenciais, no plano ético e jurídico.
Assim: fala-se em “morte assistida” como sinónimo de “eutanásia” ou de “auxílio ao suicídio”. Ora, qualquer morte, mormente a dos doentes terminais deve ser medicamente assistida e acompanhada com sensibilidade humana e caridade cristã. Fala-se também em “morte digna”, apesar da dificuldade de interpretar e aplicar, neste domínio tão sensível, o conceito de “dignidade”. Será que a “dignidade”, que se quer preservar mediante o recurso à eutanásia, deve significar impedir que se chegue a um “sofrimento intolerável sem esperança de cura”? Ou abrangerá também aqueles doentes que perderam em definitivo a autonomia, vivendo na dependência de familiares e serviços terapêuticos? Ou deslizará para aqueles casos de doentes afectados por uma depressão crónica ou por outras formas de doenças psíquicas, embora com uma perspectiva de vida que se pode estender por anos ou até por décadas? Ou será que pode incluir ainda pessoas saudáveis e sãs de espírito que, em consequência de um desgosto profundo se cansaram de continuar a viver? Ou que se fartaram da vida e não querem constituir mais tarde um fardo pesadíssimo para os filhos? Ou será que num conceito amplo de “dignidade”, habilitante da decisão de recorrer à eutanásia, podem ser incluídas ainda crianças ou deficientes, impossibilitados de exercer o direito à autodeterminação ou autonomia pessoal? Não se pense que estou a colocar hipóteses irrealistas ou ad terrorem. Trata-se de situações que já se verificaram e continuam a verificar-se na aplicação da lei que consagrou a eutanásia num país tão civilizado como é a Bélgica.
Quem assistiu ao programa “Toda a Verdade”, emitido pelo canal de televisão SIC Notícias, entre a 01,30 e as 02,30 horas, do dia 18 de Fevereiro, sabe, porque viu, que se trata de situações reais e vividas. Um médico, conhecido como “Doutor Morte”, considerou que a eutanásia se podia aplicar a gémeos que estavam a ficar cegos. E a eutanásia foi a solução encontrada para pôr fim à vida de uma mulher ainda relativamente jovem, com uma depressão desde os 19 anos, sem que dessa decisão de “morte assistida” tivesse sequer sido dado conhecimento ao seu filho adulto, cidadão culto e responsável.
Decidi enumerar estas situações paradigmáticas e brutais para, com a brevidade imposta pela natureza desta abordagem, mostrar como é fácil “resvalar” de casos raros e extremos que, na sua versão inicial, a lei terá querido exclusivamente prever, para situações intoleráveis que mais não representam do que agressões ilícitas à vida humana.
No comunicado da AJC sobre como “Proteger a Vida Humana Mais Vulnerável – Contra a Legalização da Eutanásia”, escreve-se a este propósito o seguinte: “A experiência dos Estados que legalizaram a eutanásia revela que não é possível restringir essa legalização a situações raras e excepcionais: como numa rampa deslizante, o seu campo de aplicação passa gradualmente da doença terminal à doença crónica e à deficiência, da doença física incurável à doença psíquica dificilmente curável, da eutanásia consentida pela própria vítima à eutanásia consentida por familiares de recém-nascidos, de crianças e de adultos com deficiência ou em estado de inconsciência”.
Dito isto, é preciso reconhecer o sofrimento profundo de doentes e familiares que, sem perspectivas de recuperação ou de melhoras, aguardam com a maior dor – física e moral – a chegada da morte. Não é por acaso que, também nós os crentes, dizemos e ouvimos tantas vezes, em funerais de familiares ou amigos que “aquilo já não era viver”. Ou, sobre alguém que morreu fulminado por um enfarte cardíaco, que o mesmo “teve uma morte santa”!
Apenas duas notas antes de terminar: a primeira para salientar a necessidade de o Estado dar o devido relevo à função essencial dos “cuidados paliativos” e ao seu alargamento a todos os doentes que deles carecem; a segunda para não confundir “eutanásia” ou “morte assistida” com a “obstinação ou exacerbação terapêutica”. Como bem escreveu a Deputada Isabel Galriça Neto, médica com longa experiência neste tipo de cuidados, “nenhum médico está ética ou legalmente obrigado a prolongar a vida de um doente incurável e terminal através de tratamentos fúteis e à custa de maior sofrimento”. A obstinação terapêutica também desrespeita o momento natural da morte. Ao contrário da eutanásia, que o abrevia, a exacerbação terapêutica prolonga-o, com maior sofrimento do doente.
É neste ponto particular que assume importante relevo a figura do “testamento vital”, já existente e em vigor no nosso País, mas ainda pouco utilizado.
Resulta de quanto se escreveu que um problema tão delicado e complexo como este deve ser objecto de debate alargado e reflexão profunda, sem dogmatismo e sem qualquer espécie de acrimónia ou triunfalismos. O que está em causa não é um campo de confrontação política, mas uma causa que a todos deve irmanar como seres humanos com um tempo finito de vida.
E, entretanto, talvez valha a pena pensar: Quem somos nós que, mal decifrando ainda o sublime mistério da Vida, nos arrogamos o direito de distribuir a Morte, uma morte a pedido, uma morte à la carte, em jeito de golpe de misericórdia? A Morte não nos pertence. Tratemos da Vida, que é nossa, protejamo-la, salvemo-la ou tornemo-la suportável, ganhemos com ela e nela as nossas batalhas, porque a Morte, qualquer morte, é sempre uma derrota.