Ainda não foi há muito. Já não via tal há muitos anos.

Foi numa rua da cidade da Guarda. Já de alguma idade, disso me lembro, caminhava, sozinha, aquela Senhora, chamada, talvez, por um qualquer afazer.
Despertou-me a atenção aquela Senhora. Embora não houvesse excessivo calor, estava um dia bastante quente. Eu protegia a cabeça com um daqueles bonés que se tornaram moda. Inestéticos, embora úteis naqueles dias ventosos ou de sol traiçoeiro que pode trazer alguma maleita.
Era um mês com «r» e, como ensina a sabedoria popular, os meses com «r» no nome são meses de perigo soalheiro. Aquela Senhora protegia-se com uma sombrinha. Simples, é certo, mas com um colorido bem conjugado. E caminhava a meio passo. Nem apressada, nem muito devagar. Cruzámo-nos numa rua da cidade. Melhor: o meu boné ridículo cruzou-se com uma sombrinha singela, mas elegante.
Não sei quem era aquela Senhora, que família tinha, nem donde vinha, nem para onde ia, nem o que tinha a fazer. Ou o que já tinha feito no final daquela manhã soalheira e regressava a casa, fosse ela qual fosse e ficasse ela onde ficasse. Também não lhe fixei o rosto, nem o que vestia, nem o corte ou a cor dos cabelos. Nem sei bem se vi a Senhora. Vi mais uma sombrinha a proteger uma Senhora do sol.
A nossa percepção é sempre selectiva. Todos sabemos isso, mas muito o vamos esquecendo. Entre outros factores, apreendemos a realidade levados pela surpresa e novidade. Se não fosse a sombrinha que a abrigava do sol, passaria por aquela Senhora sem a ver. Ou, então, vê-la-ia como outra Senhora qualquer. Mas, em virtude da sombrinha, aquela Senhora não era uma Senhora qualquer. Era uma Senhora com sombrinha. Era uma Senhora que era só sombrinha. Para mim, quando com ela me cruzei.
Não sei onde se encontrará agora a Senhora da sombrinha, mas sei que ela passou a fazer parte das minhas recordações de uma rua da cidade, onde o meu ridículo boné se cruzou com a sua elegante sombrinha.
Nem sei se aquela Senhora, de sombrinha para se proteger do sol, me viu com aquele ridículo boné que me cobria a cabeça. Creio que não me chegou a ver. E, muito menos, o meu ridículo boné. Usar um boné como o meu, andrajo da moda, é correntemente usual nas ruas da nossa cidade. Como nas ruas de outras cidades. Por isso é que é moda. Por isso é que é usual. E o usual não desperta a atenção e não se vê. Cegos, passamos por ele. Por isso creio que aquela Senhora de sombrinha não terá reparado em mim com boné na cabeça. Um ridículo boné, como são ridículas outras modas que por aí enxameiam para mal vestir as gentes.
Se não fosse a moda usual poderia eu ter usado um guarda-sol. Mas já não se vêem guarda-sóis. O guarda-sol está fora de moda. Só se vêem guarda-chuvas, quando está a chover. Mas naquele dia não havia chuva para alguém se proteger da chuva. Por isso creio que aquela Senhora de sombrinha não me chegou a ver. Eu não usava um guarda-sol fora de moda, como ela usava uma sombrinha para se proteger do sol. Se usasse um guarda-sol, a senhora de sombrinha ter-me-ia visto, talvez, quando o meu guarda-sol, fora de moda, se cruzasse com a sua sombrinha, fora de moda também. Assim, sem o inusitado guarda-sol, eu não existo agora na memória dela, se é que existi para ela naquele momento, com o meu boné a publicitar a moda. Mas ela existe na minha. Em razão de uma sombrinha fora de moda.
A Senhora não saberá que a sua sombrinha virou história. A sombrinha que ela trazia aberta contra os costumes de agora, bem contrários aos costumes ou modas de antanho, do tempo da meninice. Minha e talvez dela. Por que razão levava ela uma sombrinha fora de moda para se proteger do sol? Terá ela pensado nisso ou o tempo não passou por ela?
Curioso. Vi uma sombrinha a proteger do sol uma Senhora. E não vi um guarda-sol. Curioso?... Afinal, talvez, não tanto. A nossa língua tem destas coisas, como outras línguas possuem as suas. Se, naquele dia, me tivesse cruzado com um cavalheiro com semelhante objecto a proteger-se do sol, teria pensado num guarda-sol. E estranharia também com o meu pensar. O guarda-sol já não é guarda-sol, porque passou de moda para os cavalheiros se guardarem do sol. Aliás, nunca os cavalheiros utilizaram muito o guarda-sol. Utilizavam mais o tradicional chapéu de feltro, como hoje utilizam o boné. O mesmo objecto, sóbrio sempre e geralmente preto, possuía nos cavalheiros os dois nomes. É guarda-chuva – que chuva não guarda - para se protegerem da chuva. E guarda-sol – que sol não guarda - para se protegerem do sol.
E a sombrinha? A sombrinha é, ou era, - porque as modas também vão mudando nos hábitos e costumes - o guarda-sol das senhoras. A sombrinha, objecto que faz sombra, assumiu aqui o nome da própria sombra. A sombrinha não é a sombra refrescante. A sombrinha é o objecto que faz sombra. Digam os gramáticos que nome se dá a tal fenómeno linguístico. É uma “sombra” tratada com carinho. É o que significará o sufixo terminal «inha». Não é sombra. É sombrinha. É o carinho de quem reconhece o benefício recebido, a frescura da sombra. É como se, no nome, fosse acoplado um profundo agradecimento. Ou então como se houvesse, materializado na sombrinha, a deferência e estima pela pessoa que a usa. A sombrinha dá sombra a uma Senhora. Com respeito.
“Sombrinha”, “guarda-sol” e “guarda-chuva”. Três palavras a indicar o mesmo objecto. Mas “sombrinha” ´é fiel às suas origens. Ela procede da latina, “umbra” (= sombra) que origina várias palavras portuguesas, como “penumbra” (= quase sombra), “umbela” e também “umbra”. E “sombrinha”, claro, em cujo seio se abriga a “umbra” latina e aí se mantém abrigada. É a filha, jovem, a cuidar da mãe, velhinha. Não sei se é também por isso que a palavra “sombrinha” transporta aquele “inha” do carinho e do amor. A este nível o “guarda-sol” é filho desnaturado. Eliminou a origem, embora a mantenha na sua acção. Esqueceu a sombra para se voltar para o sol.
O “guarda-chuva” expulsou completamente do seu seio a sombra que se projecta no chão para enfrentar a água que cai das alturas. Em contrapartida alargou o horizonte semântico. É guarda-chuva que protege da chuva, mas é guarda também de um mundo de campos significantes em que encontramos a palavra “chuva” protegida pela “guarda”. É que há chuva de muitas coisas. E a literatura não o tem esquecido. As línguas possuem estas virtualidades. O sentido figurado das palavras e as metáforas aí estão para o mostrar. Assim damos connosco a falar de “guarda-chuva ecológico” e “guarda-chuva financeiro”. E, nestes tempos de tenebrosa e interminável guerra, quem ainda não terá ouvido falar em “guarda-chuva nuclear”?
Pensando no quando, no onde, no como e em que circunstâncias, imagine o leitor de que é que o guarda-chuva nos poderá servir de abrigo. O nosso cérebro possui possibilidades infinitas para criar e se adaptar a estes fenómenos linguísticos que poderão corresponder a outros tantos fenómenos reais do mundo circundante. Por isso – não me lembro onde encontrei a metáfora – a nossa mente é um guarda-chuva. Só tem utilidade quando está aberto. Maravilhoso guarda-chuva!
Como o havemos de adjectivar? Chamemos-lhe “guarda-chuva mental”. Aberto, mais do que um abrigo, será horizonte dos humanos horizontes. Do bem, da liberdade, da paz.
Guarda, 27 de Abril de 2022