O exercício do poder, nomeadamente através da investidura em lugares políticos ou em altos cargos públicos, constitui um perigo em face dos excessos que propicia e a que, em tantos casos, convida ou, até, incita.
Figuras aparentemente controladas e sensatas chegam a perder a cabeça e, inebriadas pelo encanto do (co)mando, vão além do que as boas práticas aconselhariam. Mas se, em vez de pessoas ponderadas e de trato modesto (o que, reconheça-se, não é muito frequente entre quem ambiciona o poder político), os titulares dos mais altos cargos forem, como é mais frequente, por temperamento ou por natureza, pessoas ambiciosas e arrogantes, o cenário piora. São então evidentes os riscos de abusos, as prepotências sobre colaboradores, subalternos, enfim, sobre os destinatários do exercício do poder. E, quanto maior for o poder, mais grave será o risco ao abuso. É o que acontece justamente com os responsáveis de um governo eleito com maioria absoluta. O hábito de mandar e de ver os outros de espinha curvada ou em poses reverentes, leva-os à febre do controlo sobre quem se lhes oponha ou possa opor. É aí que a democracia – não a que se tem apenas na boca, mas antes a que se vive e faz parte dos valores mais entranhados dos “homens do leme” – representa um limite e um travão capaz de nos proteger a nós e também a quem detém o poder. É a bússola que permite resistir à desorientação das tentações do poder e encontrar o caminho da moderação e do respeito pelos outros.
Mas nem sempre é suficiente para evitar os abusos. Este fenómeno é geral, porque resulta da própria natureza humana. Os exemplos que se seguem têm um denominador comum: o descontrolo que se apodera dos “poderosos” do mundo e que os leva a ofender o bem comum, a pisar os outros e a organizar ou, ao menos, a participar em “jogos de autoridade” e em práticas de humilhação de quem lhes aparecer no caminho.
A propósito, vem-me à memória um excesso, por ventura dos mais irrelevantes, mas mesmo assim sintomático por ter sido praticado por Mário Soares, um respeitado democrata, genericamente admirado como tal. Relato, socorrendo-me da memória: Soares seguia dentro de um autocarro com outros políticos, quando um agente da GNR, em serviço, no cumprimento da sua missão de regulação do trânsito, forçou o veículo a parar. Mário Soares levantou-se do seu lugar e, abrindo uma janela, interpelou-o, num destempero, com uma rispidez inesperada, gritando-lhe: “Oh senhor guarda, desapareça; e diga ao seu colega para desaparecer. Não queremos a polícia aqui” (o filme ainda se encontra na net…) Fiquei “varado”! Então o símbolo da cultura democrática em Portugal dirigia-se daquela forma desapropriada a um simples agente da autoridade, em serviço?
Recordei esta cena quando li um relato do livro do escritor José Luís Peixoto, que tem como figura central o industrial, comendador Rui Nabeiro. Trata-se de um episódio ocorrido depois de um almoço em Campo Maior, organizado por Nabeiro a pedido de Mário Soares, com a presença deste e do 1º Ministro espanhol, Felipe González, quando as comitivas dos dois políticos se dirigiam para Badajoz. A dado momento do percurso, já muito próximo da fronteira do Caia, há um movimento inesperado na estrada. Escreve José Luís Peixoto, na “pele” da personagem de Rui Nabeiro, que o diretor (de alfândegas) o informou de que havia povo infiltrado na comitiva e que, por haver “trânsito ilícito de produtos”, ele não podia permitir a passagem da fronteira. E Rui Nabeiro (ainda pela pena de José Luís Peixoto) vai narrando: “Assim que [o Diretor da Alfândega] acaba de dar esta explicação, ouve-se uma porta a bater com toda a força, aí vem o Mário Soares. Começa a falar ainda ao longe, furioso: porque é que nos está a complicar a vida? O diretor, lívido, hirto, tenta defender-se, estou a cumprir a lei, só estou a cumprir a lei, senhor doutor. Já aqui a cuspir as palavras, olhos nos olhos, o Mário Soares diz-lhe duas ou três coisas que, tenho a certeza, não quis realmente dizer e que, acredito, se arrependerá logo que as considere mais a frio. O diretor da alfândega parece transformado em pedra. Acalmo o Mário Soares, enquanto convenço o diretor a deixar passar os principais, os que vão já atrasados para o palanque. […] Passa o automóvel de Felipe González, altivo. Logo a seguir, o automóvel de Mário Soares abranda a poucos metros de nós. O próprio Mário Soares abre o vidro e dirigindo-se ao diretor da alfândega, apontando-lhe o desdém (sic), dá-lhe a garantia de que hão-de ter uma conversa, só os dois. Ponho-me à frente desse olhar e faço sinal para ir andando, que não se preocupe, eu fico aqui a tratar do assunto” – in “Almoço de Domingo”, 11ª edição, Quetzal, páginas 136 e 137.
Resta dizer que Rui Nabeiro era grande amigo pessoal e admirador de Mário Soares, além de seu correligionário político.
Apesar de tudo, para Mário Soares, creio haver uma circunstância adjuvante, não despicienda: uma intrínseca e entranhada má vontade para com a autoridade, os seus símbolos e agentes. Consequências de uma vida de opositor ao regime de Salazar e Marcello Caetano, de perseguido político, que foi preso interrogado e deportado sem julgamento.
Muito menos colérico do que Mário Soares, mais cerebral e institucionalista e, portanto, mais responsável pelos seus excessos, também, contudo, o atual Presidente Marcelo Rebelo de Sousa se excedeu na admoestação/ameaça pública que dirigiu à Ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa. Como escreve o EXPRESSO da semana passada, “no sábado, o Presidente da República aproveitou uma plateia mesclada de poder local, regional e central para disparar mais um tiro de pólvora ao Governo (na pessoa da Ministra da Coesão, que estava à mão) pelo que considera ser a fraca execução do PRR”. Eu tinha visto na TV e confesso que não gostei. Ficou-me a sensação de ouvir “falar grosso” para quem, nem na hora nem na posição, se podia defender. Isto é, de ver “bater em quem é/está fraco”. Gostaria mais de ter visto o P.R. dirigir estas palavras, se não ao 1º Ministro, ao menos ao Ministro Pedro Nuno Santos…!
Mas todos estes episódios são factos menores em relação ao que aconteceu com o Secretário de Estado Miguel Alves. Esse sim, é o retrato de um posicionamento disfuncional e perigoso relativamente ao exercício do poder. Grave pelos contornos do acontecido, grave pela incompetência, leveza e falta de pudor no modo como se desbaratam dinheiros públicos, grave pela personalidade política envolvida – tratou-se do Secretário de Estado Adjunto do 1º Ministro; grave por ter atingido e manchado o próprio 1º Ministro e muito grave pela personalidade do parceiro de negócio escolhido. Ricardo Moutinho de seu nome, é uma figura patética de “empresário-topa-a-tudo” que deu uma entrevista alucinada ao EXPRESSO (pág. 6 do número de 11 de novembro). Neste caso, como infelizmente em tantos outros mais por esse Mundo fora, a “sedução do Poder” converteu-se em pura “paranoia”!
Lisboa, 16 de novembro de 2022