Pontos de Vista
Nunca, como hoje, se falou tanto em “Identidade”.
Noutros tempos, a palavra referia-se quase sempre à identidade pessoal ou civil. Traduzia o reconhecimento de que o indivíduo era o próprio. De um modo simples significava o conjunto de características particulares, traduzidos em dados pessoais que identificam alguém enquanto ser singular e único, designadamente, nome, data de nascimento, sexo, filiação, estado civil, impressão digital, fotografia, nomes dos pais e do cônjuge, altura, cor os olhos, raça, profissão, residência, assinatura, dados que constavam, no essencial, do Bilhete de Identidade (e, mais tarde, do Cartão de Cidadão), de certidões do Registo Civil e, eventualmente, em impressos anexos constantes dos processos de identificação civil dos titulares, como poderia ser o caso dos sinais particulares (cicatrizes, tatuagens, peso, deficiências, deformidades), a que se acrescentaram, com o tempo e o desenvolvimento das tecnologias, muitos outros, como, por exemplo, o grupo sanguíneo e o DNA ou ADN).
Posteriormente, adicionaram-se diversos números identificativos, a começar pelo NIF, pelo número da Segurança Social e pelo número de beneficiário do Serviço Nacional de Saúde.
A crescente complexidade da criminalidade e as necessidades de uma investigação criminal eficaz passaram a impor a recolha e a utilização de outros dados sobre a identificação de suspeitos da prática de crimes (além do DNA, v.g. a digitalização e comparação da íris), antecedentes policiais ou criminais, cúmplices ou, até, familiares, penas já aplicadas, comportamento prisional, companhias suspeitas, ligações a associações criminosas, relações afectivas, viagens efectuadas, lugares frequentados, vida nocturna, modus operandi utilizado em actividades penalmente ilícitas... Tais dados e outros de idêntico teor constavam dos certificados de registo criminal e de fichas em papel dos arquivos de informações policiais. Com a utilização crescente da Informática, a informação policial passou a figurar nos “bancos de dados” electrónicos de dimensões por vezes colossais, devidamente organizados e conectados. O nível de detalhe dos dados recolhidos passou a acompanhar a complexidade da investigação e a gravidade dos crimes de que alguém é suspeito. Com o incremento da cooperação policial e judiciária internacionais, mormente na investigação da criminalidade transnacional, como é o caso do terrorismo ou da criminalidade económica, maxime no caso de suspeitas de corrupção, aumentou exponencialmente a sofisticação dos métodos utilizados, bem como dos dados recolhidos quer na fase preventiva quer na fase de investigação, bem como as sinalizações e as vigilâncias muito mais eficazes e a intervenção fundamental de serviços “de inteligência” (serviços secretos) que, têm acesso às mais variadas e modernas tecnologias, desde a já banal videovigilância urbana até à intercepção de comunicações por satélite, como foi o caso do sistema ECHELON. Os riscos acrescidos da violação da intimidade da vida privada dos cidadãos inocentes eventualmente envolvidos nas investigações conduziu à intervenção activa já não só das entidades competentes de protecção de dados dos diferentes Estados nacionais, mas também à supervisão por parte das mais diversas organizações internacionais e á cooperação transfronteiras entre vários países, geográfica e historicamente mais próximos e com maiores afinidades culturais e económicas.
A identidade passou a distribuir-se pelas mais diferentes áreas da sociedade. Fala-se, assim, hoje, de uma “identidade cultural” (carreira escolar, graus académicos, estabelecimentos frequentados, classificações e prémios atribuídos, obras publicadas, preferências artísticas ou de leitura), de “identidade profissional”, com particular saliência para o curriculum vitae, de “identidade sanitária” (doenças, cirurgias, internamentos hospitalares, vacinas), identidade ideológica (seja lá isso o que for) e de tantas outras.
Justifica-se uma palavra especial para a “identidade biológica” e a “identidade genética”. Trata-se de uma janela de insuspeitadas possibilidades que se abre no quadro das “novas fronteiras da intimidade pessoal”. Num primeiro momento muito se escreveu sobre as ligações que se estabelecem entre “vida privada” e “bioética”, potenciadas pela leitura do genoma humano. Como escreveu alguém, “com a possibilidade de se tocar a “intimidade biológica”, passa a tornar-se possível conhecer o indivíduo não só através do modo como “está” ou como “age”, mas no interior da sua própria estrutura biológica: como é.
A revisão constitucional de 1997 introduziu, no artigo 26º, uma expressa referência à garantia da dignidade pessoal e da identidade genética do ser humano – artigo 26º, nº 3, da CRP. A nossa Constituição foi um dos primeiros textos constitucionais a nível europeu, se não mesmo a nível mundial, a reconhecer expressamente a identidade genética do ser humano, relacionando-a com a dignidade pessoal e a limitação da tecnologia e da experimentação científica, Tal referência reforça o alcance da constatação de que o património genético de cada indivíduo constitui um meio de identificação da pessoa física, assim se configurando a identidade genética humana como um bem jurídico-constitucionalmente tutelado. Todavia, ao contrário do direito à identidade pessoal, a exacta configuração operacional da garantia da identidade genética do ser humano está deferida pela Constituição para o legislador.
Uma breve referência para que não se confundam “dados genéticos” com “dados genealógicos”, sendo estes os dados relativos ao conjunto dos antepassados segundo uma linha de filiação. É conhecida a obsessão de certos grupos religiosos, como é o caso da Igreja de Jesus Cristo do Último Dia (mormons) pela informação relativa aos respectivos antecedentes familiares. Ora, sendo certo que uns e outros dados (genéticos e genealógicos) não se confundem, a verdade é que a ligação que entre eles se venha a estabelecer pode constituir um prelúdio para práticas eugénicas.
Como escreveu Cunha Rodrigues (cfr. “Perspectiva Jurídica da Intimidade da Pessoa”), num futuro próximo, admite-se como possível o conhecimento de situações cromossomáticas de todos os factores genéticos e a constituição de bases acessíveis a qualquer pessoa. Esta eventualidade transformará o ser humano do futuro naquilo a que já se chamou o homem de cristal, um ser em que a transparência atingirá a própria individualidade, o modo de estar e o modo de ser. Entrar-se-á então no campo da defesa da intimidade biológica, o que suscita novos a imprevisíveis problemas. Quanto à vantagens no campo da saúde, os benefícios são por demais evidentes e aí poderá residir a revolução que permitir tratar com sucesso doenças até agora sem solução.
As questões da identidade de género aí estão na ribalta política, a constituir tema de encarniçada disputa. Mas por hoje ficamo-nos por aqui deixando o tema no cabide dos assuntos a tratar lá mais para o inverno porque, por ora, ele está ainda…fervendo!
Praia das Maçãs, 28 de Agosto de 2019