Pedofilia


Que a Igreja está a passar tempos difíceis já o sabemos desde o momento da renúncia de Bento XVI, sem forças para continuar o combate que tinha iniciado ainda no pontificado de S. João Paulo II, e da escolha do nome de Francisco pelo actual Pontífice, em homenagem ao Poverello de Assis.
Na Igreja de São Damião, a famosa imagem de Cristo crucificado chamou-o e disse-lhe: “Francisco, vai e repara a minha casa que, como vês, está em ruínas”.
Vários desmandos e vícios do clero atingiam a Igreja de então, que os Papas procuraram corrigir ao longo dos sécs. XI XIII, sobretudo desde as reformas de Gregório VII (1020 1085), consolidadas por 4 concílios de Latrão (1123 1215). Foi neste ambiente que Francisco cresceu e viveu.
Três grandes remédios propôs S. Francisco, permanentemente impressos no coração dos franciscanos e relembrados constantemente nos três nós do cordão franciscano: os votos de pobreza (vs. riqueza, ostentação, simonia), castidade (vs. nicolaísmo ou concubinato) e obediência (vs. desrespeito pelo Vigário de Cristo).
Infelizmente, a Igreja moderna enferma dos mesmos males do séc. XII. A obediência é indissociável da humildade, tão cara a S. Francisco.
Modernamente, temos assistido a tristes casos de desobediência ao Papa, que são por demais conhecidos no seio da Igreja. Da mesma forma, assistimos a alguns casos de desobediência aos Bispos por parte de sacerdotes, que recusam cargos, serviços ou paróquias, para os quais são nomeados, ou transferências e dispensas, chegando, em alguns casos, a sublevar o povo contra o seu bispo, contrariando os votos de obediência professados no dia da sua ordenação ao bispo e seus sucessores.
O Papa tem intervindo pessoalmente nos casos de irresponsabilidades na gestão dos dinheiros da Igreja (são conhecidos os casos do afastamento e posterior renúncia do bispo da diocese alemã de Limburgo devido a despesas excessivas na reconstrução luxuosa da residência episcopal; o caso do bispo entregue pelo Papa Francisco à justiça italiana, acusado de várias ilegalidades na gestão dos dinheiros do Vaticano). Aliás, na sequência destes escândalos financeiros, os papas Bento XVI e Francisco iniciaram um processo de maior transparência e adequação dos procedimentos financeiros da Santa Sé às normas internacionais.
O problema foi terem colocado sempre consagrados à frente deste tipo de instituições. A sequência das investigações tem demonstrado, neste e noutros casos (e.g. o da falência do Banco Ambrosiano), que estes prelados e sacerdotes dirigentes não eram desonestos, mas sobretudo muito mal aconselhados. A partir do momento em que foram substituídos por leigos qualificados, as coisas mudaram e os problemas começaram a ser sanados.
No plano diocesano, há ainda muito a fazer neste domínio, quando não se apresentam contas ao povo, nem à Diocese, quer por parte de sacerdotes (párocos ou presidentes de irmandades, de instituições sociais associadas), quer pela parte de leigos. A falta, em Portugal, de um sistema único de remuneração dos sacerdotes cria injustiças gritantes. Se, numa diocese, o sacerdote recebe um estipêndio único, financeiramente aceitável e que lhe garante sustento mínimo, sem o deixar cair na miséria, noutra diocese, tem de andar de paróquia em paróquia negociando com as fábricas paroquiais um valor que vai somando a outros. Noutras dioceses, onde o pagamento depende de um arcipreste menos correcto, há jovens sacerdotes que correm o risco de não conseguirem o suficiente para o sustento mínimo. Neste domínio, ainda, em associações de fiéis, temos casos de leigos coniventes com irregularidades gritantes nas remunerações de sacerdotes capelães quando, contrariando decisões de assembleias gerais anteriores, infringem deliberadamente decretos episcopais e decisões do Conselho Presbiteral, que a maioria dos leigos pretendia fazer respeitar, e colocam a assembleia geral seguinte perante factos (pagamentos) consumados. Mas essas contas são depois supervisionadas pela Cúria Diocesana, que fecha os olhos a estas irregularidades.
Tudo isso não abona em favor da Igreja e precisa de ser devidamente sanado.
Vamos agora ao terceiro nó franciscano, o da castidade, que tem estado em causa com os crimes de pedofilia na Igreja. É, sim, um crime hediondo, abjecto, abominável (não há palavras que o definam), em que alguns membros do clero têm caído. Os últimos papas têm iniciado e prosseguido um trabalho assinalável de depuração no seio da Igreja católica, que tem culminado com a redução ao estado laical e entrega à justiça de muitos desses membros. O Papa Francisco não hesitou em o fazer até relativamente a um cardeal de quem era muito amigo, ao que parece. E julgo que todos os católicos, leigos e consagrados, são unânimes na condenação destes crimes e no desejo de que sejam entregues à justiça os membros cuja culpa seja apurada na sequência das investigações e sejam expulsos aqueles que vejam a sua culpa confirmada judicialmente.
A Igreja tem também o dever de prestar todo o apoio às vítimas, de as acompanhar social e espiritualmente, pois, em alguns casos, ficaram marcas indeléveis para o resto da vida.
Conheço membros do clero que foram muito injustamente acusados de pedofilia, porque está na moda e porque pega, lançando-se um labéu do qual nunca mais se livram. Antigamente, para se queimar um sacerdote, acusava-se de ter uma relação ilícita com uma mulher. Hoje acusa-se de pedofilia. Recordo o caso do cardeal George Pell um dos cardeais mais próximos do Papa Francisco, nomeado por ele para o ajudar a reformar a Cúria Romana, ele que era dos mais talentosos no domínio económico. Acusado de pedofilia pelo tribunal da Austrália, certamente com o apoio de opositores ao Papa Francisco, abandonou imediatamente o Conselho de Cardeais do Papa Francisco, para não prejudicar os trabalhos. Foi condenado e ficou preso durante mais de um ano, enquanto o recurso para o Supremo Australiano decorria. Viria a ser absolvido em 2020. E isso aconteceu logo a este arcebispo de Melbourne e, depois, de Sydney, que foi o primeiro no mundo a estabelecer, em 1996, um protocolo com o objectivo específico de investigar e tratar de queixas de abuso sexual de crianças na arquidiocese.
Outros há que são acusados devido a interpretações erradas de gestos inocentes de consolo, ânimo e até de amizade.
No caso destes dois últimos males da Igreja, aqueles responsáveis do clero (bispos, vigários, arciprestes, superiores, etc.) que têm fechado os olhos, ignorando deliberadamente os problemas, ou que têm agido por mero corporativismo, defendendo esses poucos sacerdotes contra os leigos, são culpados de conspurcar a reputação e o excelente e meritório trabalho desenvolvido pela forte e pesada maioria do clero, que permanece fiel ao sacerdócio e à vocação.
É em defesa da forte maioria destes sacerdotes e bispos, inocentes destes crimes hediondos, que esses responsáveis devem agir. Eu fui seminarista, conheci seminaristas de outros Seminários, lecionei no Seminário. Portanto, convivi com equipas formadoras responsáveis pelos seminaristas, e a palavra pedofilia nunca a ouvi nem tive conhecimento de qualquer prática dessa natureza.
Na Holanda, o acento da pedofilia deslocou-se da Igreja Católica para o desporto e mundo do espectáculo. Depois de esgotado o assunto no seio da Igreja, a comunicação social mudou a orientação para outras áreas sociais onde a pedofilia até está presente em mais casos, que não são públicos por não serem investigados. Tal como aconteceu noutros países, foram criadas linhas de atendimento telefónico para as crianças poderem falar sobre experiências que as tenham deixado confusas, culpadas, chocadas. Vários ministérios criaram spots no Youtube especificamente para os mais jovens, no sentido de os orientarem para essas linhas de apoio. Urge fazer o mesmo em Portugal.
Quanto aos não crentes, deixo o apelo de não cavalgarem uma onda farisaica e arrogante, que por aí corre, e de não generalizarem.
Os escassos bombeiros que são culpados de provocar incêndios não podem manchar o árduo esforço de todos os soldados da paz, que – oh, quantas vezes, infelizmente! – pagam a sua dedicação com a própria vida.
Os poucos professores que atraiçoam a confiança de alunos com abusos de pedofilia não podem manchar toda uma classe que se tem pautado por uma extrema entrega e dedicação a crianças que têm mais vivências na escola do que em casa. Falo, não apenas em termos do ensino-aprendizagem, mas também em termos de trabalho de apoio e acompanhamento social e psicológico (que não raras vezes se assume como amparo e confidência já num plano de natureza familiar supletiva).
Os poucos pais e demais familiares que abusam dos seus laços afectivos para atentar contra a inocência de seres tão indefesos, como as crianças que lhes estão confiadas pela lei natural, não podem manchar a vasta multidão de pais e familiares que fazem os sacrifícios mais dolorosos para propiciar a estas crianças melhores condições de vida.
Portanto, não se confunda a árvore com a floresta!