A história do sacrifício de Abraão, apresentada na primeira leitura, pode impressionar.

Deus pode pedir a um pai, a Abraão, que lhe ofereça em sacrifício o seu próprio filho, Isaac? Esta história terá sido contada exactamente para convencer os hebreus que Deus, ao contrário do que era praticado noutras religiões, não quer sacrifícios humanos. Mas não se esgota aqui a mensagem do texto. Ela é muito mais rica.
Vale a pena pegar na Bíblia e ler esta história completa: Gén 22, 1-19. Façamos uma leitura pausada, atenta. Podemos imaginar os pensamentos e os sentimentos de Abraão, de Isaac… De seguida, dêmos um passo mais. Voltemos a lê-la, mas do modo como o fizeram muitos santos antes de nós: vendo naquele pai, Abraão, um símbolo de Deus; naquele filho, Isaac, um símbolo de Jesus, o Filho de Deus que voluntariamente Se entregou à morte para nossa salvação. A chave de leitura pode vir de uma afirmação da segunda leitura, a propósito da manifestação do amor de Deus por nós: “Deus não poupou o seu próprio Filho, mas entregou-O à morte por todos nós”.
O tempo da Quaresma é um tempo especial para nos voltarmos para Deus, para nos reaproximarmos do seu coração e do seu amor. A história, se ao princípio pode chocar, depois acaba por nos tocar e, por fim, por nos fazer vislumbrar, com as devidas distâncias, a enormidade do amor de Deus (e de Cristo) por nós, seus filhos adoptivos. A nossa leitura espiritual pode terminar com as palavras de S. João: “Deus é amor. E o amor de Deus manifestou-se assim no meio de nós: Deus enviou ao mundo o seu Filho Unigénito, para que, por Ele, tenhamos a vida… Ele mesmo nos amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados.”
Se no Domingo passado a Palavra de Deus nos convidava a ir ao deserto, hoje convida-nos a subir ao monte. Do monte ao qual subiram Abraão e Isaac, passamos, com a imaginação, ao monte Calvário. O Evangelho, por sua vez, conduz-nos ao monte da Transfiguração.
No alto do monte, Jesus foi transfigurado e “as suas vestes tornaram-se resplandecentes”, de uma brancura que não é deste mundo. A testemunhar este mistério estiveram três apóstolos: Pedro, Tiago e João. Se nos recordarmos que também apenas eles serão testemunhas da agonia de Jesus, no Monte das Oliveiras, percebemos o motivo da escolha: é preciso acompanhar a história de Jesus até ao fim. A sua história não terminou na cruz e na morte, mas sim no triunfo sobre ela, na Ressurreição. A transfiguração e a brancura das vestes disso são um sinal e uma antecipação.
Tal como os três discípulos, também nós seremos testemunhas, na Semana Santa, da sua agonia, paixão, morte e ressurreição. Até lá, temos ainda um caminho a percorrer. O caminho quaresmal. Um caminho que nos convida a entrar no deserto (do silêncio e da oração) mas também a subir ao monte. Ao monte do Calvário, onde alcançamos o ponto mais alto do amor de Deus; ao monte da Transfiguração, desde o qual, pela proximidade com Cristo, podemos olhar em volta e ver o mundo e os homens numa nova perspectiva: aquela que nos vem da Páscoa. Subamos ao monte para nos sentirmos pequenos… e grandes. Mas acima de tudo, agradecidos.