O Espírito Santo que no Baptismo desceu sobre Jesus, condu-l’O agora ao deserto, onde permanecerá por quarenta dias.

Este simbólico número remete-nos para os quarenta anos de Israel no deserto, mas sobretudo para os quarenta dias da Quaresma que começamos a percorrer. Quarenta também os dias do dilúvio, com os quais Deus purifica e renova o mundo e no fim estabelece uma nova aliança, como refere a primeira leitura: “Estabelecerei a minha aliança convosco… por todas as gerações futuras”.
Este novo pacto de amizade entre Deus e a humanidade, é como um regresso à condição do paraíso, na qual Deus e Adão passeavam na brisa da tarde como dois amigos, os animais selvagens conviviam com o homem e os anjos o serviam. Assim é o projecto original do Criador: harmonia total entre Ele, o Homem e a Criação. Vencendo, qual novo Adão, a prova do deserto, o Filho de Deus recupera o quadro original e reabre-nos as portas do paraíso que o pecado do velho Adão tinha fechado.
Com a vitória sobre Satanás, no deserto, e a harmonia original recuperada, Jesus pode então proclamar que o “tempo cumpriu-se e o Reino de Deus está próximo”. A espera pelo regresso à harmonia primordial chegou ao fim. O Reino de Deus está próximo, porque as portas do paraíso foram de novo abertas por Jesus. Para entrar nesta nova era, cabe ao homem converter-se e aderir ao espírito do Evangelho: “arrependei-vos e acreditai no Evangelho.
O símbolo do deserto traz à memória uma belíssima imagem usada pelo profeta Oseias a propósito da relação de Deus com o seu povo. Nela, Deus é apresentado como esposo e o povo de Israel como sua esposa. Esta esposa foi infiel a Deus, abandonou-O. Apesar disso, Deus permanece fiel, não consegue deixar de a amar. E desejando reconquistar o seu amor e fidelidade, declara: “É assim que a vou seduzir: conduzi-la-ei ao deserto, para lhe falar ao coração”.
Regressando ao deserto, ao lugar do primeiro amor, ao lugar onde se conheceram, enamoraram e celebraram uma aliança, reavivar-se-ão as recordações e Deus falará, de novo, ao seu coração. Este anseio de Deus por reconquistar o amor perdido, pode ajudar a ler o episódio da ida de Jesus para o deserto: ali é restabelecida, pela fidelidade de Cristo, a aliança quebrada pela nossa infidelidade; é reconquistada a paz perdida no pecado original.
A imagem do deserto torna-se, assim, sugestiva também para nós. A Quaresma é o tempo de nos deixarmos conduzir pelo Espírito Santo ao deserto, de nos exercitarmos na luta contra o pecado, no arrependimento e mudança de atitudes. É o tempo para regressarmos a Deus, voltar a enamorar-nos do amor primeiro, o amor de um Deus que nos criou e, no Baptismo, nos regenerou e fez filhos adoptivos.
Entremos, pois, no deserto quaresmal, não com semblante carregado, mas confiantes, alegres e determinados a travar um combate espiritual. Munidos das armas da oração, do jejum e da caridade, havemos de celebrar, com coração novo, a festa da Páscoa. “Para renovar na santidade os vossos filhos, concedeis este tempo de salvação, a fim de que, libertando-se do fermento do pecado, se convertam a vós de todo o coração” (Prefácio II da Quaresma)