A memória das palavras


Sophia publica, em 1962, um livro que será marcante na sua obra e que é, ao mesmo tempo, uma declaração de defesa da liberdade individual, Livro Sexto. É um grito de revolta contra uma opressão ditatorial em dias de contestação. Lembre-se que no ano anterior tinha começado a guerra em Angola.
Significativamente o livro divide-se em três partes: as coisas, a estrela e as grades. Uma das técnicas poéticas, mais ao gosto da autora, é a nomeação. Através da utilização de nomes quer concretizar o que as palavras têm de abstracto. Não se trata de uma coisificação. Trata-se antes de um forte apelo à preocupação com aquilo que as pessoas sentem e sofrem. Será uma maneira de denunciar o mal da sociedade. Nos poemas desta primeira parte temos um caminhar progressivo de intensificação: “Um homem sobe o monte desenhando / a tarde transparente das aranhas”; “Este que está inteiro em sua vida / fez do mar e do céu seu ser profundo”; “Porém Cacela / foi desejada só pela beleza”. Avança para um pedido fulcral na sua poética: “Musa ensina-me o canto” repetido muitas vezes e concluído simbolicamente no último verso do poema que me corta a garganta. A opressão das palavras, a limitação, o cercear da liberdade criativa. Mas também a palavra cortante que potencia a revolução de mentalidades cortando as amarras da opressão. Termina, esta parte, com uma possível solução para o recuperar da pureza inicial: Ressurgiremos. Neste poema concentra-se a hipótese de uma harmonia social perdida retomando o equilíbrio que a civilização possuiu e que pode permitir a renovação na luz branca de Creta. A alavanca que pode mudar o mundo é assim o voltar às origens, ao mundo que permitiria a justiça e a igualdade e a fraternidade.
O itinerário mantém-se na segunda parte. Como se poderá realizar esse processo? Transferir o quadro o muro a brisa … para o mundo do poema limpo e rigoroso. Assim de simples. Atingir a felicidade será seguir um percurso de nomeações metafóricas: Pela flor pelo vento pelo fogo / pela estrela da noite tão límpida e serena … pelo amor sem ironia … Caminhar em plena luz sabendo quem procuramos e onde chegaremos conscientes da necessidade de uma presença fantástica e liberta. Ao avançar encontramos uma inscrição que é ao mesmo tempo um desejo, uma poética e um testamento. Em dois simples versos resume-se tudo isso e aí se revela o esplendor da poesia:
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto ao mar
As grades, última parte do livro, iniciam o percurso com poema Pátria, hino de exaltação e denúncia. É um país de pedra e vento duro mas também um país de luz perfeita e clara. Que se procura? A limpidez das tão amadas / palavras sempre ditas com paixão. Encontramos, em seguida, dois prantos. a D. Pedro que recebeu em paga da luta pela pátria insulto e morte e ao “dia de hoje” onde o o gesto criador é impedido e quem ousa lutar é destruído. Na denúncia activa dos males sociais seguem-se poemas intensos na defesa da liberdade: Data, A veste dos Fariseus e As pessoas sensíveis. Neles Sophia delata a podridão que eivou a sociedade portuguesa e, recorrendo a linguagem evangélica de propósito adulterada para a crítica ser mais irónica e convincente pede: Perdoai-lhes Senhor / Porque eles sabem o que fazem. Afinal é Tão longo o caminho e Tão poucos os homens naquela cidade onde domina a solidão, o medo impera, as bocas se calam, os gestos se escondem e seu longo combate / encontra silêncio.
Com este livro, Sophia constrói um percurso singular como singular é a sua poesia. E original. E didáctica. Assim a definiu Eduardo Lourenço: “Há poucos itinerários poéticos em língua portuguesa tão impregnados de positividade original, tão, de raiz, canto ao rés de uma realidade aceite como esplendor efémero e eterno e por isso tão isento de polemismo e negatividade como o de Sophia de Mello Breyner e simultaneamente, por esse mesmo autónomo florir, tão fiel à inspiração adolescente que, à parte o natural êxtase ou terrífica anunciação com que recebe a revelação do original esplendor do mundo e ou a sua súbita ocultação, jamais deixará de trilhar um caminho da serenidade e radiante presença.” A poesia era para ela a defesa integral da justiça, das palavras e das coisas inseridas na realidade. Dura realidade a de um país submisso à força e pela força.