Entrevista: D. Manuel Felício, Bispo da Guarda
A GUARDA: Como avalia a realização da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa?
D. Manuel Felício: Portugal viveu, na semana passada, a 40ª Jornada Mundial da Juventude, evento que ultrapassou as melhores expectativas. E o Papa Francisco, no final, agradeceu à cidade de Lisboa, que qualificou como cidade dos sonhos, pela oferta de fraternidade, a alegria do encontro que ele viveu com tantos jovens e os sinais de que o encontro também aconteceu nos mesmos jovens entre si e com a Pessoa de Jesus.
De facto, os jovens presentes nesta JMJ, vindos de todos os países menos um, impressionaram Portugal e o Mundo, graças também ao poder dos meios de comunicação social.
A GUARDA: Quais os sinais mais marcantes desta Jornada Mundial da juventude?
D. Manuel Felício: Houve sinais de que tanto crentes como não crentes ficaram profundamente tocados pelas palavras do Papa.
Ficam na nossa memória palavras ditas em Fátima de que a Igreja é como a capelinha, sempre de portas abertas, onde todos podem entrar para serem acompanhados, como a mãe sabe acompanhar os seus filhos. Já antes, na cerimónia de abertura, no Parque Eduardo VII, o Papa insistira em que a mensagem do Evangelho é para todos sem exceção. E desafiou a multidão a repetir com ele este “todos, todos, todos”.
Quando o interpelaram, na conferência de imprensa dada a bordo do avião que o conduzia no regresso a Roma, sobre se este “todos” tem alguma condição, ele explicou que a porta está sempre aberta para todos, mas cada um, com o devido acompanhamento, irá descobrindo que a Igreja tem regras, as quais pretendem orientar cada pessoa pelos caminhos da sua realização e da construção da comunidade. Insistiu também em que é dever da Igreja ir ao encontro das pessoas, nas suas situações e necessidades concretas, não se podendo limitar a esperar por elas.
A GUARDA: O Papa fez apelos directos à classe política e à sociedade civil?
D. Manuel Felício: Logo no discurso da abertura, dirigido à classe política e à sociedade civil, começou por interpelar a Europa, da qual nós também fazemos parte, sobre a sua identidade e lembrou as obrigação fundamental de tudo fazer para garantir o direito à vida e o acolhimento para todos, referindo expressamente a eutanásia e o aborto e continuando pelos dramas dos migrantes e refugiados. Será que o desenvolvimento tecnológico se há-de garantir, com sacrifício da vida humana?- perguntou. E a pergunta aí fica nos ouvidos de todos e para reflexão de cada um.
É de registar que o Papa trouxe para este seu discurso importantes referências da identidade nacional e das tradições portuguesas, como são a aventura dos descobrimentos, Fernando Pessoa ou a Amália Rodrigues, a qual teve um dos seus fados executado na cerimónia de acolhimento, a que ele presidiu. Também muito nos alegrou ver a presença e a atuação, neste evento, do grupo de bombos do Fundão, que ali se deslocou acompanhado pelo seu Presidente da Câmara
A GUARDA: O Papa também lembrou a cultura e a acção social?
D. Manuel Felício: Os mundos da cultura e da ação social estiveram também na agenda do Papa. Assim, no encontro que realizou com estudantes, na Universidade Católica, deixou apelo para que, também entre nós, se possa dar cumprimento à proposta que ele mesmo fez, em 2020, denominada Pacto Educativo Global. Trata-se de um processo no qual se procura o envolvimento de todos os agentes com responsabilidade na educação das gerações mais jovens, desde a família à escola, passando pelas instituições sociais, com destaque para os mass media, até às religiões.
Por sua vez e na área da ação social, de visita ao Centro Paroquial da Serafina, o Papa apelou à Igreja e à sociedade no seu todo para responderem às urgências da pobreza e da marginalidade.
Na nossa memória ficaram as suas palavras desafiantes, convidando a não termos nojo dos pobres e dos doentes. E acrescentou que o amor, quando é concreto e verdadeiro, suja mesmo as mãos.
Falando, em discurso breve, como foi sempre a tónica das suas intervenções, na celebração da Via -Sacra, depois de lembrar que vamos reviver o caminho de Jesus para a cruz, insistiu em que “amar é arriscar” e, por isso, há que correr o risco de amar até ao fim.
Na Vigília, contou o adágio do alpinista, em que se diz – “O importante não é não cair, mas sim não permanecer caído”. Por isso e a propósito, continuou dizendo que, quando qualquer pessoa cai, é preciso que haja quem a levante e o olhar de quem levanta é a única situação em que se permite olhar alguém de cima para baixo.
A GUARDA: Podemos dizer que o papa falou ao coração dos jovens?
D. Manuel Felício: Lembrou aos jovens presentes as raízes da alegria e, a propósito, o lugar e a função de pais, avós, amigos, sacerdotes, catequistas e outros e fez-lhes a interpelação direta – quereis guardar a alegria só para vós ou também levá-la aos outros? E a resposta do sim não se fez esperar. A todos impressionou o tempo prolongado de silêncio que a multidão dos jovens presentes foi capaz de guardar, quer na celebração da Via-Sacra, quer na Vigília.
E quando lhe perguntaram porque deixava o papel de lado para improvisar, em muitas das suas comunicações, ele adiantou que os jovens têm pouco tempo para dar atenção. Por isso, é preciso ir ao essencial, sem rodeios.
Invocando situações que são bem características do que é viver em Portugal, foi buscar o exemplo das ondas alterosas da Nazaré para convidar os jovens a serem surfistas do amor, e a manterem-se nas ondas do amor.
A GUARDA: A questão dos abusos também marcou a agenda do Papa?
D. Manuel Felício: Um assunto que o Papa não podia deixar de abordar foi o dos abusos. Por isso, logo no dia da chegada, lembrou a Bispos, Padres, Religiosos e outros agentes da pastoral que “o escândalo nos convida a fazer o caminho da purificação”. Logo a seguir, recebeu 13 vítimas de abusos, ouvindo cada um individualmente e pedindo-lhes desculpa, em seu nome e em nome da Igreja. Interpelado sobre o assunto, na conferência de imprensa que deu no regresso a Roma, disse que é sempre muito doloroso tratar este tema; que acompanhou e acompanha os procedimentos da Igreja em Portugal e considera que vão na direção certa. Insistiu ainda em que queremos uma Igreja segura e, por isso, temos de continuar com tolerância zero, em matéria de abusos.
A GUARDA: A Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa, vai deixar lembranças, pois até o Papa agradeceu a organização?
D. Manuel Felício: A terminar, o Papa agradeceu a experiência destes 5 dias em Portugal e repetiu que se sentia impressionado com a multidão dos jovens presentes, incluindo os 25 mil voluntários, com os quais teve o último encontro, antes de regressar a Roma.
A cidade da alegria, com vários stands a apresentarem os distintos carismas existentes na Igreja, o parque do perdão, com os confessionários ao ar livre e a capela anexa, convidando ao recolhimento e à oração vão também ficar como importantes lembranças simbólicas desta JMJ.
A GUARDA: E depois desta Jornada Mundial da Juventude?
D. Manuel Felício: Este foi o evento. A nós, agora, pertence transformá-lo em processo de acolhimento e acompanhamento dos nossos jovens, que, em Portugal, se confrontam com dificuldades específicas. Basta falar na precaridade do emprego e nas diferenças salariais em relação à média europeia, o que gera a tentação de emigrar.
Mas a tradução do Evangelho para a vida e o mundo de hoje continua a ser o grande desafio colocado á Igreja, a que esta Jornada Mundial da Juventude já começou a responder.