Entrevista: Elsa Fernandes, Presidente da Associação dos Jogos Tradicionais da Guarda


Elsa Fernandes é natural da Guarda. Estudou até ao 9º ano na Alemanha. Concluiu o 12º ano na Escola Secundária Afonso de Albuquerque; Bacharelato em Relações Públicas no ISACE; Licenciatura em Relações Públicas no ISMAI; Pós-Graduação em Marketing de Eventos e Produtos Turísticos na UBI.
Nos tempos livres gosta de caminhar, ler, ir ao teatro, assistir a um concerto, viajar... mas acima de tudo, “vestir a camisola” da Associação de Jogos Tradicionais da Guarda.
A GUARDA: Desde Agosto 1979 que a Associação de Jogos Tradicionais da Guarda vem intervindo no sentido de proceder à recolha, sistematização e incentivo à prática de Jogos Tradicionais. Actualmente o que é que ainda há para fazer neste campo?

Elsa Fernandes: Quando, há mais de 40 anos, se desenhou (leia-se pensou) a Associação de Jogos Tradicionais da Guarda colocou-se no foco na prevenção – a preocupação era evitar o declínio da prática lúdica tradicional e manter esta identidade cultural bem viva no distrito da Guarda e no país.
Com a evolução da sociedade e as novas formas de viver e trabalhar, surgem novos desafios e os jogos tradicionais que foram em tempos lúdicos, competitivos e complementares às atividades diárias, passam, no entanto para um papel quase exclusivamente lúdico. Assim, continua a ser fundamental impor os jogos tradicionais como elevado potencial educador, socializador, cultural, desportivo... Sabemos que podemos ser uma comunidade mais viva e mais saudável através dos jogos tradicionais e também nos aspetos económicos e sociais.
Para que isso possa ser uma realidade temos que continuar o trabalho de recolha, de formas de jogar, de objetos de jogo, de atividades lúdicas e complementares; temos que continuar a sistematizar e a organizar os levantamentos que fazemos ou as informações que nos chegam para podermos disponibilizar a quem precisa ou queira, para podermos expor, para podermos apresentar – para podermos disseminar. E, naturalmente que faz todo o sentido continuar a prática dos jogos tradicionais para os manter vivos nas memórias das pessoas, mas também porque através dos jogos tradicionais se desenvolvem competências pessoais e coletivas, físicas e sociais fundamentais – destreza, força, mobilidade, memória, cooperação, espírito de equipa, etc.
A missão da Associação de Jogos Tradicionais da Guarda continua tão actual que continuamos a lutar por um espaço que possa desenvolver esta missão de forma exemplar para a região, o país e o mundo – o Museu do Jogo Tradicional na Guarda continua a ser o nosso maior intento porque nele se afirma, de forma única, os três pilares da Associação dos Jogos Tradicionais da Guarda – recolher, sistematizar e praticar.
 
A GUARDA: Quais as principais atividades que estão a ser programadas para este ano?
Elsa Fernandes: Estes últimos anos têm sido desafiantes por diversos motivos e este ano em particular está a ser um ano de viragem. Há várias iniciativas que estão a ser estruturadas no sentido de poderem vir a ser concretizadas.
Saímos de dois anos de pandemia que nos tem esgotado a capacidade criativa, perdemos um dos nossos mestres o ano passado o que nos obrigou novamente a repensar o caminho traçado... e, naturalmente que sendo uma associação de utilidade pública e sem fins lucrativos estamos sempre reféns de financiamento externo, privado ou público e da disponibilidade voluntariosa de cada um de nós.
Ainda assim estamos focados na organização de algumas atividades que se têm vindo a impor como “marcas nossas”- o “Joguilho – Trilho de Jogos” que é uma caminhada complementada com história e histórias das localidades por onde passamos e que na edição deste ano queremos abordar a ferrovia; a “Tiborna – Almoço Lagareiro” que fazíamos anualmente e que pretendemos recuperar este ano depois de todos os constrangimentos anteriores; um Torneio de Malha e de Raiola que tencionamos organizar para voltar a criar as condições para os muitos praticantes que ainda vão existindo e, também, para demonstrar aos que já não se lembram como estas atividades são ou sequer como se joga; temos vindo a apostar em atividades de intervenção comunitária que nos permitam desenvolver os jogos tradicionais no âmbito do envelhecimento ativo. Fizemos no ano passado a formação de animadores “Viver a Tradição” e queremos continuar a realizar esta atividade num sentido mais amplo, mas sempre com o objetivo de disseminar conhecimentos e experiências, de dar competências e capacitar pessoas para elas desenvolverem e organizarem as atividades que visam temas tão presentes como o envelhecimento activo e a intergeracionalidade.

A GUARDA: Os jogos tradicionais da região da Guarda têm alguma particularidade que os distingue dos de outras regiões do País?

Elsa Fernandes: O que distingue os jogos tradicionais uns dos outros são as próprias comunidades. São as pessoas que fazem os jogos tradicionais e é por isso que eles se tornam tão ricos em termos culturais e sociais.
Aparentemente os jogos são os mesmos no concelho, no distrito, no país e até no mundo. Joga-se à malha em muitos locais, mas o material da malha (ferro, madeira), a espessura e o peso, a distância a que se joga podem e são muitas vezes diferentes; joga-se ao pião um pouco por todo o mundo, mas o tipo de material do pião (madeiras mais pesadas, mais leves, com bico em metal, etc.), a estética, a forma do objeto, a forma de jogar e as próprias regras diferem.
Os jogos tradicionais são manifestações populares associadas à vivência das comunidades e, portanto, muito permeáveis a aspetos do território e das comunidades – serra ou planalto, clima frio ou quente, trabalhos agrícolas, industriais ou comerciais, rural ou urbano, etc.
Dito isto, os jogos tradicionais são sempre únicos porque quem os define são as pessoas que os praticam e jogam.

A GUARDA: É fácil envolver a comunidade nas atividades da Associação?

Elsa Fernandes: A Associação de Jogos Tradicionais da Guarda é uma das associações mais antigas da Guarda e a mais antiga nesta área de intervenção em Portugal. Seja pela temática, seja pela forma, seja até pelo histórico que nos confere muita credibilidade, somos sempre muito bem recebidos e quando desenvolvemos as nossas atividades lúdicas e também educativas e científicas, sentimos que conseguimos facilmente envolver as pessoas. No entanto, não deixamos de ser uma as sociação e não deixamos de sentir as “dores” do associativismo de hoje – somos poucos para tantas solicitações e não tem sido fácil envolver as pessoas no dia a dia da vida da coletividade. A Associação de Jogos Tradicionais da Guarda tem um extenso volume de trabalho e está envolvida em inúmeros projetos que absorvem muito tempo e dedicação – fazemos parte do Conselho Local de Ação Social, do Conselho Municipal da Juventude, da Pró-Raia, da Associação Europeia de Jogos e Desportos Tradicionais, da Associação Internacional do Desporto para Todos (TAFISA); temos inúmeras parcerias de colaboração com associações e instituições nacionais e internacionais e, todos os que integram os corpos sociais da AJTG são voluntários e dedicam-se de corpo e alma a um bem que é comum.

A GUARDA: Atualmente, quantos sócios tem, a Associação?

Elsa Fernandes: A Associação de Jogos Tradicionais da Guarda tem para cima de centena e meia de sócios que se distinguem entre sócios fundadores, individuais e coletivos. Aliás esta distinção consubstancia a essência da Associação de Jogos Tradicionais da Guarda. Somos das poucas associações que tem prevista estatuariamente a existência de sócios coletivos porque acreditamos que só conseguimos manter a originalidade e a exclusividade da prática dos jogos tradicionais em cada território se apoiarmos as associações locais (recreativas, culturais, desportivas) na organização e na prática dos jogos.

A GUARDA: Falar da Associação de Jogos Tradicionais da Guarda também é falar de Norberto Gonçalves?
Elsa Fernandes: A Associação de Jogos Tradicionais da Guarda é feita de muitos nomes que a tornaram na instituição que é hoje. Aliás mais do que nomes, a Associação de Jogos Tradicionais da Guarda é feita das muitas personalidades que a pintaram com as cores garridas que fazem dela uma associação viva e dinâmica.
O Norberto foi uma dessas personalidades que moldou a Associação de Jogos Tradicionais da Guarda de uma forma muito própria.
Mas, mais do que estar associado à Associação de Jogos Tradicionais da Guarda, Norberto Gonçalves está associado aos Jogos Tradicionais em Portugal. A sua formação académica poderia ter contribuído para esta fusão, mas o que o tornou indissociável da prática lúdica e tradicional foi a sua paixão – Norberto Gonçalves era acima de tudo um apaixonado da cultura popular, falando, escrevendo e praticando sempre que podia.

A GUARDA: Como é que a Associação de Jogos Tradicionais da Guarda viveu estes dois anos de pandemia?

Elsa Fernandes: A pandemia tem servido para nos reinventarmos e para nos repensarmos, mas também para nos definirmos num percurso que é hoje diferente do que era há dois anos.
Foram e estão a ser tempos de muitos desafios.
A ausência de contacto físico é limitadora para a prática de jogos tradicionais pelo que tivemos que, em determinado momento, recorrer ao que era possível: na quarentena, em 2020, fizemos uma ação nas redes sociais – “40 dias, 40 jogos” em que todos os dias demos sugestões de jogos ou de outras práticas lúdicas tradicionais para fazerem em casa e em família. No âmbito do programa de voluntariado “Geração Z” fizemos, nesse verão, uma atividade em que os jovens voluntários, estudantes universitários, ajudavam os mais novos, alunos do preparatório, no entendimento de várias matérias curriculares através dos jogos tradicionais – o “JogAprende”; no ano passado fomos adaptando algumas iniciativas para poderem ser desenvolvidas à distância e até a nossa participação nos Jogos Mundiais de Jogos Tradicionais foi online; reforçámos parcerias com outras entidades e reafirmámos colaborações... Mas a capacidade criativa não chega para fazer face às inúmeras atividades que não se fizeram ou às que se adiaram; a criatividade não chega principalmente para resolver os problemas económicos... e a pandemia criou-nos muitos constrangimentos financeiros que esperemos possam ser minimizados com o apoio das entidades públicas, como seja a Câmara Municipal da Guarda.
Na verdade, a falta de proximidade física limita-nos e constrange-nos. Falta-nos estarmos juntos outra vez.
“O concelho da Guarda tem que voltar a afirmar-se através da cultura”
A GUARDA: Como olha para a cultura no concelho da Guarda?
Elsa Fernandes: Actualmente olho para a cultura no concelho da Guarda com esperança. Temos um contexto social e económico único para podermos desenvolver uma estratégia cultural bem pensada. A cultura na Guarda perdeu nos últimos anos coerência e coesão e tenho esperança que volte a recuperar um fio condutor. O concelho da Guarda tem que voltar a afirmar-se através da cultura – da excelência dos equipamentos que tem, da capacidade de programação que já demonstrou muitas vezes existir, das pessoas e das associações que existem no concelho e desenvolvem um trabalho muito meritório em diversas áreas. Em paralelo Portugal e a Guarda têm, neste momento, acesso a fundos comunitários para poderem ser bem usados numa estratégia que reforce a identidade destes territórios e que fomente uma estreita colaboração entre cultura – turismo – economia e ação social – os quatro pilares que também defendemos na Associação de Jogos Tradicionais da Guarda para o Museu do Jogo e que acreditamos poderia ser uma mais-valia para a Guarda e para Portugal.